“Sempre soube que na minha cabeça alguma coisa não funcionava muito bem.”
“O perigo de estar no meu perfeito juízo” (Porto Editora, 2023) é escrito por Rosa Montero na primeira pessoa. A forma como se foi apercebendo e integrando emoções e comportamentos que a fizeram recear o pior, a incapacidade de ser como os outros, de se sentir em ruptura com a realidade e em profunda solidão. Desde a infância que tinha ideias ruminantes de perigo, geradoras de pânico e de uma ansiedade implacável, fazendo-a sentir-se numa dimensão inacessível aos outros.
Com o tempo, estudando psicologia para perceber o que lhe acontecia, lendo tudo o que encontrava sobre o assunto e fazendo uso da sua arte de observar os outros, Rosa Montero foi descobrindo que ser estranho não era assim tão raro; verdadeiramente estranho era ser normal, atribuindo-se a normalidade a uma construção estatística resultante daquilo que é mais frequente. Para escrever este livro, durante três anos “sepultou-se” sob dezenas de volumes, de psicólogos, psiquiatras, neurologistas, escritores “mais ou menos oficialmente chanfrados, ou suicidas”, daqueles que escrevem sobre escrever e sobre a relação dos artistas com as drogas. O resultado foi um livro intenso e instigador da aceitação da diferença, quiçá até da bizarria que tantas vezes está escondida pela criatividade, originalidade e audácia de quem produz arte, independentemente da sua forma. Inspirador também de outras leituras, sendo Rosa Montero, num gesto que lhe é natural, grandemente generosa com outros criadores, invocados ao longo da narrativa e listados no final, como fontes.
“O perigo de estar no meu perfeito juízo” é fruto de um trabalho minucioso e desafiante de Rosa Montero, consigo própria e com a comunidade artística em geral, de demonstração da relação entre a criatividade e uma certa extravagância, sobre a relação entre a criação e a alucinação e, em última análise, sobre a especial vulnerabilidade dos artistas para o desequilíbrio mental. Para tanto, apresenta estudos académicos e evidências quotidianas da abundância das excentricidades entre famosos mas, também, entre desconhecidos, salientando, por exemplo, que mais de trezentos milhões de pessoas sofrem de depressão e cerca de oitocentas mil suicidam-se todos os anos, um por cento desenvolveu alguma forma de esquizofrenia e, segundo a OMS, uma em cada quatro pessoas sofrerá, a dada altura da sua vida, de um transtorno mental.
“Aqueles que se dedicam a juntar palavras tendem mais para o descalabro mental.”
A subjectividade presente no universo da criação artística entra, muitas vezes, em conflito com a objectividade. Para além disso, a arte pode ser muito solitária e, a falta de estrutura e suporte para saber separar o trabalho dos outros aspectos da vida, pode tornar-se perigosa. Paralelamente, o universo da arte é extremamente competitivo e desigual, contribuindo para a ansiedade, a depressão e o abuso de substâncias lícitas e ilícitas. Rosa Montero demonstra como muitos ícones, das mais diversas vertentes artísticas, se deixaram vencer pelo vício, em determinados casos de forma fatal.
Difícil parece ser contrariar o mito de que cuidar da saúde mental e do bem-estar vai diminuir a criatividade. No passado, muitos foram os exemplos daqueles que, incompreendidos por quem os rodeava, foram sujeitos a tratamentos traumáticos, com prolongados períodos de internamentos e tratamentos devastadores.
“Estar louco é, sobretudo, estar só.”
Rosa Monteiro é excepcional ao fazer deste seu último livro uma mistura de (auto)biografia – a sua e a de diversas personalidades do mundo artístico -, ensaio e ficção. Um livro que a própria considera não convencional e difícil de definir mas, acima de tudo, um livro que lhe terá dado muito gozo escrever. No final, ao género de redenção perante si própria, a sua arte e os outros autores, deixa-nos com uma pungente definição de criatividade: “uma viagem até outra dimensão”.
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