Há livros que não acabam, mesmo quando se vira a derradeira página. Tal como a realidade que retratam, parecem (sobre)viver ao epílogo e perpetuar-se no leitor. É a arte da narrativa, sustentada em fortes elementos de caracterização e em componentes de movimento, aos quais se fica ligado mesmo quando o livro termina e os olhos pousados permitem continuá-lo noutra dimensão. Uma arte, esta de transformar páginas em sonhos: primeiro os do autor, através da narrativa; depois do leitor, para além dela. “O País dos Outros” (Alfaguara, 2021), a terceira obra da Leila Slimani publicada pela Alfaguara, é um destes livros, indo para além de uma saga familiar, dando lugar ao retrato de um povo em torno do conflito que, entre 1944 e 1955, grassou em Marrocos.
Leila Slimani é uma exímia escrutinadora de vidas, capaz de uma narrativa sequencial e ainda assim não determinista, de preservar evidências e mundividências mas, também, o mais profundo de mundos diferentes. Foi assim nas duas anteriores obras que a consagraram entre nós – “No Jardim do Ogre” e “Canção Doce” -, e volta a ser assim em “O País dos Outros”.
Em França, no rescaldo da 2ª Guerra Mundial, Mathilde apaixona-se por Amine, um oficial marroquino ex-combatente pelo exército francês, ficando refém da sua leveza e determinação. Vão viver para Marrocos, onde Amine procura firmar a herança familiar, em termos materiais e culturais, expondo Mathilde a um mundo que não é o seu. Ambos vivem, a partir de então, um doloroso confronto entre o sonho e a realidade, num total desencontro de expectativas e de prioridades, cavando um fosso que coloca em lados diferentes o amor e a tradição, ambos fundamentais para Amine.
Antes de obter a independência em 1956, Marrocos viveu uma situação de grande instabilidade com base no movimento independentista, que teve início na década de 30 e se intensificou no final da Segunda Guerra Mundial. Em meados da década de 50, os ataques a interesses franceses no território passaram a ser frequentes. Mathilde e Amine encontram-se no centro deste conflito, ele marroquino, ela alsaciana, divididos entre a sobrevivência e a preservação da integridade. Slimani consegue demonstrá-lo através do relato de episódios de brutalidade, mas fundamentalmente através da luta interna das personagens.
Os efeitos do colonialismo, o racismo, as diferenças culturais e religiosas são retratadas nos conflitos geracionais que surgem na família de Amine, na forma como este gere a quinta e os trabalhadores nativos, na relação que mantém com vizinhos colonos franceses e de outros estrangeiros, junto dos quais alarga horizontes, na tremenda luta interior entre a fidelidade aos padrões culturais que ditam o domínio do homem sobre a mulheres e o respeito que Mathilde lhe suscita. O resultado acaba por ser uma tremenda luta interna entre a liberdade e a submissão.
Oriunda de uma família francófona, Leila Slimani nasceu em Marrocos, onde viveu até aos 17 anos antes de ir estudar para Paris. Dedicada ao estudo de Ciências Políticas, ao jornalismo e à escrita de romances e de ensaios, o seu relato surge eivado de realidade e sentido critico, completando a sua acção cívica em defesa dos direitos humanos – e, em especial, dos direitos das mulheres.
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