“O romance nasceu de uma conversa que tive com uma amiga de infância. Tínhamos acabado de entrar para a escola primária. Ela disse que queria ter olhos azuis. Olhei para ela para a imaginar de olho azul e senti uma repulsa violenta pela imagem que me veio à cabeça se o sonho dela se realizasse. A mágoa na sua voz parecia pedir compaixão e eu fingi que a sentia, mas, espantada com a profanação que ela propunha, fiquei furiosa.”
Sejam bem-vindos a “O Olhar Mais Azul” (Editorial Presença, 2023), provavelmente um dos livros mais poéticos e poderosos que irão ler sobre o racismo – e que, no caso de Toni Morrisson, (1931-2019), partiu de um lugar diferente: a auto-aversão racial, e a forma como tal sentimento é apreendido e interiorizado. “Este romance dá bicadas no olhar que a condenou”, escreve a autora norte-americana no prefácio, confessando não ter ficado plenamente satisfeita com a forma em como estruturou este romance: “A minha solução – dividir a narrativa em partes que o próprio leitor tinha de encaixar umas nas outras – pareceu-me uma boa ideia, mas, na prática, não me satisfaz agora. Além disso, não resultou: muitos leitores continuam a sentir-se tocados pela história, mas não comovidos”. Preciosismos à parte, estamos perante um triunfal e cortante romance de estreia que, após uma descrição ao estilo imobiliário em jeito de memória, entra no Outono – o livro percorre as estações do ano – com uma frase monumental: “Passam freiras, silenciosas como a luxúria, e homens bêbados e olhos sóbrios cantam no átrio do hotel grego”.
No centro deste romance está Pecola e a sua imensa solidão, ela que, na escola, “era o único elemento da turma que se sentava sozinho numa carteira para dois”, debatendo-se diariamente com o olhar derrotado que o espelho lhe devolvia: “Sentava-se durante horas a fio diante do espelho, tentando descobrir o segredo da sua fealdade, a fealdade que fazia com que as pessoas, tanto professores como colegas, a ignorassem ou desprezassem na escola”.
Após um incêndio que deixou a sua casa em cinzas, Pecola irá viver com a família de Claudia (a narradora de 9 anos) e Frieda (10 anos). Ao contrário de Pecola, Claudia sabe apontar o lugar do desconforto, a razão de uma raiva que vai crescendo em tamanho tal como ela em idade, mas que consegue colocar em perspectiva: “Eu destruía as bonecas-bebé brancas. Mas o desmembramento das bonecas não era o verdadeiro horror. O que realmente horripilava era a transferência desses mesmos impulsos para as meninas brancas. A indiferença com que eu as teria cortado à machadada só era abalada pelo meu desejo de o fazer. (…) Quando aprendi que essa violência gratuita era repulsiva, que era repulsiva por ser gratuita, a minha vergonha debateu-se em busca de um refúgio. O melhor esconderijo era o amor. Daí a conversão de sadismo puro em ódio forjado, em amor fraudulento”.
Toni Morrisson alterna entre o passado e o presente, contando-nos a história dos Breedloves, os pais de Pecola, e de como uma potencial história de amor se transformou numa grande tragédia, movida a álcool – no caso do pai – e a ressentimento – no caso da mãe, que carregava o marido “como uma coros de espinhos e os filhos como uma cruz”; apresentando-nos a um grupo de prostitutas onde há, por exemplo, Geraldine, “que não suava das axilas nem entre as coxas, quw cheirava a madeira e baunilha, que fizera suflés na escola de artes domésticas” – e que faz uma distinção clara entre “pessoas de cor e pretos”; ou a história de Cholly, abandonado aos quatro anos de idade, que “como acontecia com tantos misantropos, o seu desdém por pessoas levou-o a uma profissão concebida para as servir”.
A escrita de Toni Morrisson é fascinante, feita de frases curtas que tanto são carícias ao de leve como alfinetadas sem aviso, num livro que confronta o conceito de beleza, investiga as desigualdades sociais e abala as fundações do racismo, obrigando-nos a olhar para o mundo com o privilégio de uns olhos azuis – ou o desejo de os possuir.
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