“Quero ir para casa. Mas não para o meu apartamento, quero ir para a minha casa de há treze anos, para a casa onde abraçava a minha mãe, dizendo que a deixaria orgulhosa, desculpando-me, explicando que me posso sair melhor da próxima vez […]”
Aos 30 anos, Millie já teve vários empregos, todos de curto prazo. Por mais que lhe agradem as pequenas mudanças de ambiente entre postos temporários – “os novos escritórios e colegas de trabalho proporcionam uma boa ilusão de variedade” –, anseia por um rendimento fixo e suficientemente alto para mudar de estilo de vida. Com mais dinheiro e estabilidade, crê que poderia tornar-se uma pessoa tranquila, confiante e independente, capaz de fazer amigos. Porém, a amálgama de cursos que frequentou não lhe serve de muito, e o seu comportamento real, marcado por um défice de higiene e limitações ao nível da interacção social, contribui para tornar tais metas difíceis de alcançar. É essa a premissa de “O Novo Eu” (Guerra & Paz, 2023), o segundo romance da norte-americana Halle Butler, publicado originalmente em 2019 e listado entre os melhores da década 2010-2019 pela revista Vox.
Ao contrário do que se poderia supor, Millie não vem de um meio desfavorecido – os pais possuem formação superior e vivem desafogadamente, tendo a mãe sido professora universitária antes de se reformar –, mas tomou uma série de más decisões. Conhecemo-la durante um estágio, numa loja de mobiliário onde há surpreendentemente poucas tarefas a executar, permitindo-lhe passar parte do tempo a elaborar listas mentais de tudo o que deveria mudar no seu quotidiano repetitivo, em que “cada manhã é apenas o início de mais um dia gasto e desperdiçado” e as noites tendem a ser passadas num apartamento ciclicamente imundo, a ver documentários sobre assassinatos, acompanhados por álcool e junk food. Todas as suas memórias “são como sal numa ferida”, incluindo a de uma relação amorosa significativa que terminou, e os raros momentos de convívio nunca lhe oferecem o conforto que procura. Por pior que pareça esta situação, com laivos de comédia negra, os retalhos cheios de mordacidade implacável que a narradora apresenta das vidas das suas colegas, cada uma com as suas frustrações, não mostram uma realidade muito mais animadora.
Se nos cruzássemos com Millie, teríamos dificuldade em compreendê-la e tendência para evitá-la. No entanto, lendo os seus pensamentos, é impossível não sentirmos pena, ao ponto de fantasiarmos agarrá-la pelos ombros e abaná-la, enquanto gritamos “Não faças isso!”, sobretudo quando a referência da agência de emprego a uma “possibilidade de efectivação” a enche de optimismo, lançando-a numa espiral diferente de decisões erradas, sabendo nós que a supervisora já está à procura de uma substituta.
Millie é demasiado peculiar para representar uma geração afectada pela precariedade laboral – e o realismo sofre com a brusquidão do salto temporal do último capítulo –, mas os seus medos, a sensação de inadequação face ao mundo e a dificuldade em dar um rumo à vida é algo com que muitos certamente se identificarão.
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