“A história embrulhada que hoje em dia conhecemos sob a designação Mistério da Boca do Inferno começou nas últimas semanas de 1929, quando Pessoa recebeu o primeiro volume das Confessions de Aleister Crowley, declaradas uma Autohagiography”.
Trata-se, muito provavelmente, de um dos primeiros casos de fake news literários nascidos em Portugal. No ano de 1930, Aleister Crowley, um membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada e influente ocultista britânico, visitava Portugal e, pouco tempo depois, era anunciado o seu suicídio na Boca do Inferno, em Cascais. Um suicídio que não foi mais do que um momento teatral, uma vez que Crowley tratou de ressuscitar cerca de um ano depois, em Berlim, cidade onde inaugurou uma exposição de pintura.
Por esses dias de 1930, o que unia Fernando Pessoa e Aleister Crowley era “o fascínio pelo mistério da existência, uma inclinação evidente para o oculto e uma propensão visível para encenações lúdicas”. Uma relação intensa vivida num curto espaço de tempo, com encontros presenciais e troca de correspondência, e que acabou por ser extinguida como a chama de uma vela num dia de ventania – mas que, enquanto durou, deu alimento para muitas páginas, fossem de jornais ou de rascunhos para um livro que não chegou a ver a luz da edição – Boca do Inferno seria a novela que Pessoa iria escrever, tal qual um escritor fantasma, e que seria atribuída a um detective inglês. Pessoa que, diga-se, foi um dos farsantes principais deste teatrinho, alimentando os jornais portugueses com embustes e ajudando a enganar as autoridades locais.
Terá sido, arrisque-se, uma relação algo interesseira. Se Crowley pretendia recrutar em Portugal gente para as suas ordens iniciáticas, já Pessoa via com esta missão uma boa oportunidade de publicar os seus poemas na revista inglesa Mandrake. Nenhum dos dois se ficou a rir.
Em “O Mistério da Boca do Inferno” (Tinta da China, 2019), livro que conta com edição de Steffen Dix, há também um aturado trabalho de investigação policial, apresentando-se toda a correspondência trocada no âmbito desta novela e, igualmente, a novela incompleta a que Fernando Pessoa se dedicou brevemente, tendo escrito 200 páginas de textos fragmentários. Segundo Steffen Dix, o objectivo da edição foi triplo: a “edição filológica e cronologicamente fiável” de todos os documentos relacionados com o encontro entre estes dois, oferecer “uma imagem clara e legível do contexto do encontro” e apontar as consequências intelectuais da visita de Crowley na vida e obra de Pessoa.
Uma edição bilingue e de cantos redondos, com a assinatura da Tinta da China, que entre fotos, documentos e uma paginação primorosa serve ao leitor um aturado trabalho policial, dando a conhecer um embuste maior no qual Fernando Pessoa participou ajudando alguém que chegou a ser considerado “o homem mais perverso do mundo”.
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