Primeiro, a terra tremeu. Depois, foi invadida pelo mar. Por fim, veio o fogo, espalhado pelo vento. Foi assim que os quatro elementos se conjugaram para arrasar a cidade de Lisboa no dia 1 de Novembro de 1755, por ocasião do evento geológico que ficou conhecido como o Grande Terramoto. Mary del Priore, premiada historiadora brasileira, faz-nos viajar no tempo, até à época da catástrofe, em “O Mal sobre a Terra: História do Grande Terramoto de Lisboa” (Objectiva, 2020). A partir da análise de uma grande quantidade de escritos da época, bem como do trabalho de outros historiadores, a autora reconstitui admiravelmente as grandezas e misérias da capital portuguesa, antes e depois do terramoto, bem como o impacto que este teve no resto do mundo.
O capítulo que caracteriza a cidade antes do terramoto, com os seus ritmos diários interrompidos ocasionalmente por espectáculos de touradas ou autos-de-fé, é um exercício delicioso de sociologia urbana. A insalubridade, a violência e a pobreza descritas por estrangeiros não estimulam o orgulho nacional, mas fazem o leitor valorizar mais os pequenos confortos quotidianos.
O capítulo seguinte descreve, recorrendo a testemunhos de sobreviventes, a sequência de desastres que marcou aquela festa de Todos os Santos de 1755 – e que revelou o melhor e o pior da humanidade. Mais do que uma fissura na crosta terrestre, o sismo tornou visíveis tensões sociopolíticas profundas entre a modernidade e o tradicionalismo que, sem ele, provavelmente demorariam mais tempo a emergir. Por isso, a breve história da reconstrução de Lisboa, que lemos a seguir, não decorre apenas a nível urbanístico, mas também económico e social, tendo então ganhado importância a figura do Secretário de Estado, Sebastião de Carvalho e Melo, conhecido como Marquês de Pombal.
Um pormenor interessante é o movimento espontâneo de ajuda internacional por parte da vizinha Espanha, da aliada Inglaterra e da cidade portuária de Hamburgo, que mantinha relações comerciais com Lisboa. Todas estas terras sofreram as consequências económicas do sismo, devido à destruição de mercadorias e à subsequente ruína de mercadores. Infelizmente, as doações de víveres, roupas, instrumentos agrícolas, ouro e prata não foram geridas da melhor maneira, existindo indícios de incúria e até de corrupção na sua distribuição.
O último capítulo do livro trata do “sismo filosófico” despoletado pelo desastre natural, que ocupou pensadores como Voltaire, Goethe e Kant. Apesar dos progressos da Era das Luzes em vários países europeus, o conhecimento dos fenómenos geológicos internos era muito incipiente, por isso a maioria dos debates girava em torno da suposta bondade de Deus, do seu plano e da necessidade de punir os pecados humanos. Fosse qual fosse a explicação aceite por cada um, o certo é que a destruição provocada pela fúria dos elementos colocou em evidência a fragilidade da condição humana, algo que sentimos ainda hoje, num tempo em que pandemias e intempéries continuam a demonstrar a nossa incapacidade de dominar inteiramente a Natureza.
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