É um lugar comum dizer que não se deve voltar a um lugar onde já se foi feliz, mas a verdade é que essa tem sido uma prática que, por várias ocasiões, tem sido uma benesse para a literatura. Veja-se o caso de Philip Pullman que, mais de duas décadas após o lançamento da trilogia Mundos Paralelos – recentemente adaptada a série em exibição na HBO -, regressou a este universo ímpar da literatura fantástica.
“A Aliança Secreta” (Editorial Presença, 2020), o segundo livro da série O Livro do Pó, tem lugar vinte anos após “A Bela Selvagem”, e dez anos depois de Mundos Paralelos. Lyra Belacqua, agora com vinte anos, responde pelo nome de Lyra Silvertongue, e a relação com o seu génio Pantalaimon já conheceu melhores dias. O que, neste caso, poderá também ter a ver com as últimas leituras de Lyra. “Os Hipercorasmianos”, livro onde o protagonista quer matar Deus e os seres humanos não têm génios, foi uma das suas recentes aventuras literárias, tendo o seu entusiasmo sido acompanhado pela repugnância do génio, que considera o autor um “monstro rancoroso e redutor de pura-lógica”. Para Pantalaimon, Lyra perdeu toda a sua imaginação e sensibilidade, cabendo-lhe a tarefa de a recolocar no caminho certo.
Lyra parece estar a sair-se de forma tépida com uma nova utilização do aletiómetro, que envolve uma profunda sensação de enjôo, e tem à perna o jovem Oliver Bonneville, numa missão encomendada pelo muito bem relacionado e temido Marcel Delamare.
Neste volume, a história decorre à volta de uma guerra das rosas entre o Magisterium, uma “massa fervilhante de organizações rivais, invejosas, suspeitando-se mutuamente, semelhantes apenas no gosto pelo poder e na ambição de o deter”, que se ergue agora de forma organizada graças a Marcel Delamare, e a Oakley Street, “uma organização cuja própria existência tinha de ser escondida da nação para cuja protecção tinha sido formada; cujos agentes eram agora, na maioria, pessoas de meia-idade ou mais velhas e também cada vez menos numerosas”, quase sem fundos e num estado decrépito.
Diz-se que, na Ásia, existem rosas cujo óleo terá uma relação profunda com o pó, podendo mesmo explicar a sua natureza, o que faz com que o Magisterium deite fogo a meio mundo para impedir que o conhecimento se espalhe. Há também, segundo a lenda, um Hotel Azul, lugar para onde vão todos os génios que foram separados – quem sabe o destino final de Pantalaimon, que está também separado de Lyra.
Philip Pullman desenha um retrato bem próximo da sociedade moderna actual, onde “as pessoas sentem-se violentadas pelas leis, exploradas pelos patrões, discriminadas por estruturas sociais que não têm como mudar”, ao mesmo tempo que critica a ostentação da riqueza da religião católica, apresenta o problema e a crise dos refugiados e descreve o estado da política e do mundo em muitos dos seus núcleos: “um governo que não confia no povo e um povo que tem medo do governo; cada lado a expiar-se mutuamente” – e com o lado mais forte convencido de que tem razão, fazendo tudo o que é preciso para concretizar o que pretende. Grande personagens, mágoas ainda maiores e uma escrita refinada que deixa água na boca para o próximo livro. Água de rosas, pois claro.
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