Para muitos de nós, leitores, os livros são um vício. Entenda-se por vício um hábito profundamente enraizado nas práticas quotidianas. Uma dependência. Haverá vida sem vícios? E quando é que se pode afirmar que somos viciados? Procuramos a recompensa através do vício? Será este uma doença? Qual a fronteira entre o lúdico e o vício? As respostas são díspares e as perguntas diversas. Os contextos divergem, apenas podemos afirmar que os actos de adição diferem em género e intensidade, nem sempre compreensíveis e racionais.
O descontrolo, o desespero, a paixão, a euforia, a raiva ou o desalento provocado por actos compulsivos e obsessivos é o que encontramos ao longo da leitura de “O Jogador” (Porto Editora, 2021), de Fiódor Dostoiévski, e simultaneamente uma cruel e satírica análise social.
Regresso à cidade “após duas semanas de ausência. Os nossos amigos já se encontram há dois dias em Roulettenburg”. A família do General esperava-o e, ao contrário do pensava, não foi recebido com grande euforia, o que contrastava com a excitação dos dias e das noites. Nos casinos e salões de jogos, entre uma multidão, o jovem Alexei Ivanovitch jogou na “roleta por Polina Alexandrovna”, na condição de “não dividir o dinheiro a meias, isto é, não ficaria com nada se ganhasse […]. Polina deveria explicar-lhe nessa noite por que razão precisava de ganhar e qual a quantia pretendia”. Observou e manteve-se em silêncio para, de seguida, avançar timidamente na primeira experiência enquanto jogador, “apostando duas ou três moedas de cada vez”. O que acontecerá quando a paixão do jogo se intersecta com a paixão por uma mulher?
Alexei Ivanovitch revela um sentido crítico aguçado em relação ao mundo que o rodeia mas, sem grandes objetivos, inicia-se na espiral de vício e da excitação, descobrindo em si a paixão compulsiva pelo jogo. Vive intensamente a sensação entusiasmante da ambição e do ganho, o temor do fracasso e a terrível sensação do desespero.
Ganhar. Ganhar muito. Ganhar sempre. É esta a sensação que o jogador gosta de sentir, mas infelizmente nem sempre é assim. Nos salões há sempre “genuínos jogadores desesperados […] que jogam de manhã à noite e estariam talvez dispostos a jogar até à madrugada, se fosse possível. Dispersam-se sempre com contrariedade quando, à meia-noite, fecham o salão da roleta. E quando o croupier principal anuncia, […] “Les trois derniers coups, messieurs”, preparam-se para apostar nessas últimas três rondas tudo o que têm nos bolsos, perdendo […]”. O que fazer? Apostar numa esperança audaz? Fugir? Deixar que a frustração, a angústia e a solidão invadam a alma? Seremos os mesmos quando o vício se entranha na rotina dos dias? Será o homem capaz de resistir ao vício? “Estava a sair do Casino, vi que ainda tinha um florim no bolso do colete e pensei: «Nesse caso, vou almoçar». Porém, depois de dar cem passos, mudei de ideias e voltei para trás. Apostei o florim […] e há realmente algo de peculiar no que se sente quando, sozinhos numa terra desconhecida, sem sabermos se teremos algo para comer nesse doa, apostamos o último florim, o único que temos! Ganhei e, vinte minutos depois, saí do Casino com cento e setenta florins no bolso. É verdade! Às vezes, é esse o poder do último florim! E se tivesse ficado desanimado? E se não me tivesse atrevido a arriscá-lo?”.
Questões como a hipocrisia, a culpa, o desafio do risco e do arriscar, o comportamento compulsivo, assim como a importância do diálogo interior na busca da compreensão da natureza humana – e, quiçá, da natureza de um jogador -, é o que o leitor encontra neste livro de Fiódor Dostoiévski.
Clássicos de Hoje é uma colecção da Porto Editora, onde o clássico e o moderno se cruzam, e que inclui títulos da literatura clássica com capas ilustradas por grandes nomes da arte contemporânea – “O Jogador” apresenta-nos uma capa ilustrada pela artista visual Tamara Alves, cujo trabalho abrange várias dimensões: muralista, ilustradora e tatuadora. Uma street artist portuguesa.
Filho de um médico militar, Fiódor Dostoiévski (Moscovo, 1821 – S. Petersburgo, 1881) foi aos 15 anos enviado para a Escola Militar de Engenharia de S. Petersburgo. É neste período que lhe desperta a vocação literária, ao conhecer outros escritores russos e não só. Terminado o curso de engenharia, dedica-se a fazer traduções para ganhar a vida e estreia-se, em 1846, com o seu primeiro romance, “Gente Pobre”. Em 1849 é condenado à morte, por implicação numa suspeita conspiração revolucionária. A pena é-lhe substituída por trabalhos forçados na Sibéria. Durante os seus anos de degredo, a interioridade e o misticismo moldaram-lhe o pensamento, assim como a vivência com a crua, duríssima, realidade russa. A experiência do exílio possibilitou-lhe um conhecimento profundo da natureza humana e da alma do povo russo. As recordações da vida no cárcere são descritas nos livros “Memórias da Casa dos Mortos” (1861) e “Memórias do Subsolo” (1864). Amnistiado em 1855, reassumiu a atividade literária e em 1866, com “Crime e Castigo”, marca a ruptura com os liberais e radicais com quem tinha sido identificado. Fiódor Dostoiévski era um escritor profundamente religioso e preocupado com questões existenciais. Um autor essencial.
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