“Não matei o meu pai, mas às vezes sinto que contribuí para isso. E, não fosse o facto de a sua morte ter coincidido com um marco importante no meu próprio crescimento físico, ela pareceria insignificante comparada com o que se lhe seguiu. Na semana a seguir à sua morte, as minhas irmãs e e eu falámos dele e Sue chegou mesmo a chorar quando os homens da ambulância o levaram, embrulhado num cobertor vermelho-vivo. O meu pai era um homem débil, irascível e obstinado, de cara e mãos amareladas. Se conto a história da sua morte, é apenas para explicar como é que eu e as minhas irmãs ficámos na posse de uma tão grande quantidade de cimento.”
São estas as primeiras, estranhas e algo enigmáticas linhas de “O Jardim de Cimento” (Gradiva, 2019 – reedição), o primeiro romance assinado por Ian McEwan que sucedeu à colectânea de contos “Primeiro Amor, Últimos Ritos”, distinguida com o Somerset Maugham Award. Um livro que lançou McEwan numa carreira literária que o transformou num dos mais inventivos e geniais escritores contemporâneos de ficção, e que se lê como um entroncamento onde se encontram O Senhor das Moscas e Os Crimes da Rua Morgue.
Jack, o narrador desta história habitada pela morbidez e a perversão, tem quinze anos, e vive com duas irmãs adolescentes e um irmão ainda mais pequeno do que ele. Após a morte dos pais, o quarteto experiencia um misto de medo e liberdade, num isolamento quase doentio onde se entregam ao ócio, ao prazer e à descoberta transgressora dos corpos, numa casa que surge como o reflexo da putrefacção e do abandono, situada numa rua que “mais parecia uma estrada no meio de um depósito de lixo”.
Através do desgoverno e marginalidade juvenis, que em crescendo vão criando no leitor um sentimento profundo de inquietação, Ian McEwan olha para o conceito de comunidade e aponta-lhe a ausência de valores, bem como uma incapacidade de distinguir entre o certo e o errado. Sempre na presença da morte e com o sexo a aparecer, de cajado na mão, pronto a pedir o préstimo de contas como no Sétimo Selo de Bergman. Um tremendo livro de estreia onde McEwan mostrou ao que vinha: fazer um manguito ou, pelo menos, abalar fortemente a moral e o conservadorismo britânicos.
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