Por vezes deparamo-nos com livros que não nos agradam de sobremaneira. Chegam-nos em trabalho ou em lazer, recomendados pelos especialistas e encobertos à partida pelo espesso manto da fama e de um corpo de obra cuja qualidade é reconhecida por crítica e leitores.
Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980) é um desses privilegiados, que soube como poucos agregar em torno de si uma áurea de quase divindade no seu país natal. Quinto filho de 14 irmãos, desde cedo revelou talento para a escrita e aos 13 anos já colaborava no jornal do pai. Foi repórter criminal e desportivo, mas destacou-se pelas suas crónicas pessoais e de crítica social, por vezes verdadeiras “confissões”, que escreveu até morrer.
A sua experiência jornalística teve um grande peso na sua escrita: captava o pulsar do Rio de Janeiro e dos seus habitantes como poucos, com tudo o que mostravam mas, sobretudo, o que ocultavam e procuravam (sem sucesso) camuflar.
Teve uma vida carregada de tragédia: o pai foi assassinado na sua presença por uma leitora que se sentiu difamada; teve uma filha cega, surda e muda; o filho foi preso e torturado pela polícia política da ditadura que ele abertamente apoiou. Pouca dessa negritude se reflecte na sua obra, usando o humor e a ironia para desvendar os códigos sociais silenciosos e transversais de um Brasil fervilhante de material para umas boas gargalhadas.
A sua carreira alimentou-se do combustível da polémica, que fazia por incendiar sempre que podia. Durante muito tempo, antes do unanimismo quase reverencial que hoje o rodeia, foi conotado de subversivo, imoral, “anjo pornográfico”, como ele próprio se auto-intitulava, e soube capitalizar esses epítetos a seu favor, projectando uma imagem que resultava na perfeição para promover o material que escrevia, principalmente na dramaturgia, onde revolucionou estrutural e tematicamente o que se fazia no Brasil. Mais tarde, também o cinema o apadrinhou, com os melhores cineastas da época áurea do Cinema Novo a adaptarem, com grande sucesso, algumas das suas obras fundamentais (em 1973, a adaptação cinematográfica de “Toda Nudez Será Castigada” realizada pelo histórico Arnaldo Jabor, ganha o Urso de Prata no Festival de Berlim). Também a televisão e a rádio apadrinharam a sua obra, com enorme sucesso entre o público e, mais tarde, a crítica.
“O Homem Fatal” (Tinta da China, 2016), livro de crónicas mais “confessionais”, quase diarísticas, com selecção e prefácio de Pedro Mexia, remete-nos para textos publicados originalmente no jornal O Globo, entre 1967 e 1973, e esse anacronismo é inescapável ao leitor, quer nas referências sociais e culturais, quer no próprio conteúdo das mesmas, pejadas de pequenas implicações muito pessoais do brasileiro.
Este registo torna-se a espaços exasperante, pela recorrência quase obsessiva dos temas (crítica ao louvor inusitado da juventude em detrimento da velhice, “a cínica promoção que se faz do jovem”, a esquerda “caviar” brasileira – “a esquerda é a fatalidade da nossa época” -, a nostalgia de um passado de “valores nítidos (…) precisos”, a nudez…) e pelo tom reaccionário que cultivam, remetendo-nos para aquela tia chata que fala incessantemente da santidade do Papa Francisco ou do avô que declara solenemente e em jeito de conclusão “Este país precisava era de um Salazar em cada esquina”, sempre que a conversa se encaminha para um tom mais progressista.
Com periodicidade semanal, este registo seria mais suportável e certamente aceite na altura. Com todos os textos condensados na bela edição da Tinta da China, para além de ligeiramente aborrecido, torna-se algo risível, o que, tendo em conta os temas focados, derrota necessariamente a intenção inicial do autor. Como dizem os anglo-saxónicos e à falta de correspondente luso à altura, “the joke is on him”. O facto de a ditadura militar ter durado entre 1964 e 1985, não será certamente despiciendo na contextualização dos alvos dos textos, por muito que esse facto passe estranhamente branqueado em muita da crítica.
A escrita é de qualidade superior, com a capacidade de condensar em textos curtos uma estrutura sólida, de encadeamento aliciante e humor cáustico, embora as mulheres e os “esquerdistas” provavelmente não se ficassem a rir depois da “punch line”. Tinha um faro certeiro para os aforismos, baptizando alguns que ficaram para a história como “O brasileiro é um feriado” e alguns textos são realmente felizes como “Assim É Um Líder” e o genial “O Medo de Parecer Idiota”.
“A Vida como Ela É…” (Tinta da China, 2016), prefaciado e seleccionado por Abel Barros Baptista, era o título da coluna que o carioca adoptivo (nasceu em Recife) escreveu no jornal Última Hora, entre 1951 e 1961. Aqui reina o conto, num tom mais ligeiro e ficcionado, embora igualmente moralista e cáustico. As figuras paradigmáticas do brasileiro malandro e mulherengo, da mulher fútil e vazia ou da mulher que se finge difícil para depois de desfazer em sentimentalidade perante a atenção masculina, do pai castrador e ultra protector das suas filhas, são aqui peões nas suas histórias, cuja singularidade deriva da “conciliação do dramaturgo genial com o jornalista experiente”, como defende Abel Barros Baptista no prefácio.
Com efeito, os factos perfeitamente verosímeis relatados, traições, crimes passionais, deslizes, corrupções e aliciamentos afins são matéria-prima dos fait-divers noticiosos, a que Nelson Rodrigues associa com classe uma toada de grande ritmo e comicidade e, regra geral em crescendo, começando por caracterizar sumariamente as personagens para depois as colocar em interacção, em espaços perfeitamente delimitados, adicionando assim uma grande visualidade à narrativa, tão característica da 2ª Arte.
“A melhor maneira de você ser universal é não sair do seu bairro”, dizia o autor numa entrevista à TV Brasil. Frase óptima para a posteridade e situação que dá sempre jeito quando o “bairro” é Ipanema.
Ironicamente, quando Nelson Rodrigues escolhe escavar para além da sua circunstância, do seu “bairro”, e explora as suas próprias contradições e demónios, a sua escrita impecável descola, bem para além das suas arreigadas convicções e odiozinhos de estimação. Justiça lhe seja feita e reconhecida: assumiu os valores que professava abertamente (algo improvável, quase impossível, na era do politicamente correcto a todo o custo), e com eles construiu uma obra coesa e incontornável a qualquer estudioso da lusofonia.
“Toda unanimidade é burra.”
Não podíamos estar mais de acordo.
1 Commentário
A pior resenha de um livro que já li na vida.