Carlos Vale Ferraz volta a transportar-nos para as memórias da colonização portuguesa em África, utilizando desta vez o mito do duplo para abordar temas como a construção da identidade pessoal e o preço a pagar pelo desafio às convenções, em “O Gémeo de Ompanda e as suas duas almas” (Porto Editora, 2022).
Ompanda é uma povoação de terras ressequidas, onde em tempos um posto militar demarcava parte da fronteira sul da colónia portuguesa de Angola. É aqui que elementos de uma missão civilizadora portuguesa salvam um bebé negro, Atsu, condenado à morte por ser um de dois gémeos – o outro nascera morto, poupando aos guardiões da tradição o trabalho de lhe porem fim à vida. Ainda em tenra idade, é novamente ameaçado quando os seus dons de menino-prodígio despertam receios supersticiosos. Adoptado por um casal branco, travará uma guerra pessoal entre duas civilizações, sempre à sombra de uma maldição ancestral que lhe prescreve a morte às mãos de um dos seus.
Em Portugal, num colégio, Atsu encontra o seu reflexo invertido na pessoa de Francisco Boavida, branco e loiro, com “feições de arcanjo rebelde”, nascido em Angola de pais brancos, mas criado entre negros, longe da família biológica, devido a um estigma que o torna igualmente maldito e que pesa mais do que as ligações paternas à nata da sociedade.
Os dois amigos crescem juntos e os seus comportamentos – em especial o desprezo do jovem negro pelo deus do céu e a sua ausência de medo face a perigos de morte – despertam o fascínio da pequena Aliene, também ela branca nascida em África, sobrinha dos salvadores de Atsu e filha de outro casal que também participou nas missões civilizadoras, embora com mais cepticismo. Aliene formará o terceiro vértice deste triângulo de amor não romântico e enfrentará também as convenções sociais, ganhando uma consciência da sua própria marginalidade que a irmanará ainda mais aos dois amigos.
Já idosa, Aliene conta os acontecimentos que testemunhou, bem como o que foi descobrindo, a um narrador empenhado em “compreender as origens das cicatrizes causadas pelas feridas do seu tempo” na actualidade. “O tempo histórico do romance, o da memória”, é “deliberadamente esmagado”, sendo vários factos apresentados fora da ordem cronológica – uma opção que o autor assume para “caracterizar a relação entre Portugal e os portugueses e África e os africanos” tal como a vê.
Entre as terras semidesérticas do sul de Angola e Portugal, a amizade entre Atsu, Francisco e Aliene oferece-lhes uma via para a conciliação dos seus universos, enquanto os seus percursos invulgares nos contam a História de um tempo ainda próximo e das sociedades que nele habitaram. No final, talvez poucos sinais restem da passagem destas três vidas pela Terra, mas poder-se-á aplicar-lhes as mesmas palavras que uma personagem pronuncia perante os vestígios da colonização portuguesa: “É pelas ruínas que podemos avaliar a qualidade da construção…”.
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