Um escritor que cria uma ficção a partir de uma sonhada auto-memória, escrita na primeira pessoa e em nome próprio. Poderia ser, de forma sumária, informativa e pouco apelando ao espírito literário, uma frase para introduzir “O Fogo Será a Tua Casa” (D. Quixote, 2018), o novo romance de Nuno Camarneiro, escritor português que, em 2012, levou para casa o Prémio Leya pelo livro “Debaixo de Algum Céu”.
“No caso de sermos interpelados por um grupo rebelde, o que era bastante provável, eu teria de escolher entre passar por jornalista e passar por funcionário de uma ONG, de preferência a Cruz Vermelha, já que todos a conheciam. (…) Para ambas me faltavam as credenciais, a experiência e a fisionomia.”
Estamos numa zona de guerra do Médio-Oriente, lugar onde o escritor Nuno Camarneiro decide viajar, na companhia do turco Kerem, para compreender melhor as razões do conflito e de quem nele participa. A verdade é que acabam mesmo por ser interpelados e sequestrados por um grupo de fundamentalistas islâmicos, que os encerra num barracão, lugar espacial onde se irão juntar a outras vítimas, formando um estranho e polifónico grupo: “Nuno, o português, cujo ofício é contar. Florian, o flamengo. Agnes, a devota. Michel, o homem que fuma. Sami, o reticente”. Um grupo ao qual, mais tarde, se irá juntar também um militar americano.
A narrativa decorre ao logo de várias semanas e, à evolução do rapto, Camarneiro junta-lhe, enquanto vão sendo anunciados atentados um pouco em todo o mundo, diversas histórias de vida, narradas por cada um dos prisoneiros – e isto apesar de nelas não residir a salvação: “As vidas, cheias de mistério, não podem ser contadas, mas aquietam-se enquanto as vozes soam”.
Camarneiro tece, e não apenas nas entrelinhas, uma crítica ao Estado Islâmico, cujos teclados não precisam de pontos de interrogação, apenas de exclamação: “O moral e o imoral coabitam em todos os homens, mas a maioria não se proclama soldado de Deus, nem está disposto a matar e a morrer por uma fé e um código de conduta. No limite, a única acção digna de um fundamentalista religioso, islâmico ou outro, é o suicídio, pois só assim impede o crente de ser homem, e de falhar perante Deus”.
Para além de um retrato do Estado Islâmico, Camarneiro fala igualmente dos “novos cruzados”, grupo formado pelos governos da Hungria, Polónia, República Checa, Estónia, Letónia, Eslováquia, Bulgária e Roménia que, para se defenderem da ameaça islâmica, anunciaram medidas como o repatriamento de todos os imigrantes ilegais – inclusive os que buscam asilo político -, a proibição de construção de novas mesquitas e de véu em espaços públicos ou a não obrigatoriedade de mandato para proceder a buscas em espaços religiosos e de culto.
Usando os momentos-limite do narrador-escritor de uma quase pré-morte, Camarneiro fala dos romances e das artes como “instrumentos para vingar o passado e reclamar uma nova identidade” e da fragilidade do ser humano, aproveitando para projectar e pensar o futuro: “Se sair daqui vivo vou tentar viver como se nunca aqui estivesse estado, mas hei-de escrever tudo o que senti. É impossível caminhar com a memória física de um pé partido, mas é importante guardá-la em algum lugar, para nos protegermos do entusiasmo do salto, para que os olhos não desejem um lugar aonde não podem chegar. Gostava de amar mais, de ser mais vagaroso e de aprender a respirar”.
Mais do que um romance visceral, “O Fogo Será a Tua Casa” encerra um tom marcadamente jornalístico, algures entre a reportagem e o diário, a descrição e a confissão, que em muitos momentos, mais do que estar presente, parece falar da margem, como se o perigo não espreitasse verdadeiramente. Um fogo, de certa forma, olhado à distância.
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