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O Fogo Será a Tua Casa, D. Quixote, Deus Me Livro, Nuno Camarneiro
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“O Fogo Será a Tua Casa” | Nuno Camarneiro

Por Pedro Miguel Silva · Em 03/07/2018

Um escritor que cria uma ficção a partir de uma sonhada auto-memória, escrita na primeira pessoa e em nome próprio. Poderia ser, de forma sumária, informativa e pouco apelando ao espírito literário, uma frase para introduzir “O Fogo Será a Tua Casa” (D. Quixote, 2018), o novo romance de Nuno Camarneiro, escritor português que, em 2012, levou para casa o Prémio Leya pelo livro “Debaixo de Algum Céu”.

“No caso de sermos interpelados por um grupo rebelde, o que era bastante provável, eu teria de escolher entre passar por jornalista e passar por funcionário de uma ONG, de preferência a Cruz Vermelha, já que todos a conheciam. (…) Para ambas me faltavam as credenciais, a experiência e a fisionomia.”

Estamos numa zona de guerra do Médio-Oriente, lugar onde o escritor Nuno Camarneiro decide viajar, na companhia do turco Kerem, para compreender melhor as razões do conflito e de quem nele participa. A verdade é que acabam mesmo por ser interpelados e sequestrados por um grupo de fundamentalistas islâmicos, que os encerra num barracão, lugar espacial onde se irão juntar a outras vítimas, formando um estranho e polifónico grupo: “Nuno, o português, cujo ofício é contar. Florian, o flamengo. Agnes, a devota. Michel, o homem que fuma. Sami, o reticente”. Um grupo ao qual, mais tarde, se irá juntar também um militar americano.

A narrativa decorre ao logo de várias semanas e, à evolução do rapto, Camarneiro junta-lhe, enquanto vão sendo anunciados atentados um pouco em todo o mundo, diversas histórias de vida, narradas por cada um dos prisoneiros – e isto apesar de nelas não residir a salvação: “As vidas, cheias de mistério, não podem ser contadas, mas aquietam-se enquanto as vozes soam”.

Camarneiro tece, e não apenas nas entrelinhas, uma crítica ao Estado Islâmico, cujos teclados não precisam de pontos de interrogação, apenas de exclamação: “O moral e o imoral coabitam em todos os homens, mas a maioria não se proclama soldado de Deus, nem está disposto a matar e a morrer por uma fé e um código de conduta. No limite, a única acção digna de um fundamentalista religioso, islâmico ou outro, é o suicídio, pois só assim impede o crente de ser homem, e de falhar perante Deus”.

O Fogo Será a Tua Casa, D. Quixote, Deus Me Livro, Nuno CamarneiroPara além de um retrato do Estado Islâmico, Camarneiro fala igualmente dos “novos cruzados”, grupo formado pelos governos da Hungria, Polónia, República Checa, Estónia, Letónia, Eslováquia, Bulgária e Roménia que, para se defenderem da ameaça islâmica, anunciaram medidas como o repatriamento de todos os imigrantes ilegais – inclusive os que buscam asilo político -, a proibição de construção de novas mesquitas e de véu em espaços públicos ou a não obrigatoriedade de mandato para proceder a buscas em espaços religiosos e de culto.

Usando os momentos-limite do narrador-escritor de uma quase pré-morte, Camarneiro fala dos romances e das artes como “instrumentos para vingar o passado e reclamar uma nova identidade” e da fragilidade do ser humano, aproveitando para projectar e pensar o futuro: “Se sair daqui vivo vou tentar viver como se nunca aqui estivesse estado, mas hei-de escrever tudo o que senti. É impossível caminhar com a memória física de um pé partido, mas é importante guardá-la em algum lugar, para nos protegermos do entusiasmo do salto, para que os olhos não desejem um lugar aonde não podem chegar. Gostava de amar mais, de ser mais vagaroso e de aprender a respirar”.

Mais do que um romance visceral, “O Fogo Será a Tua Casa” encerra um tom marcadamente jornalístico, algures entre a reportagem e o diário, a descrição e a confissão, que em muitos momentos, mais do que estar presente, parece falar da margem, como se o perigo não espreitasse verdadeiramente. Um fogo, de certa forma, olhado à distância.

D. QuixoteNuno CamarneiroO Fogo Será a Tua Casa

Pedro Miguel Silva

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