Há livros que nos intrigam, seja pela capa, pelo título ou pelas múltiplas traduções em várias línguas, em tão pouco tempo. Há livros que nos intrigam pelo seu sucesso inesperado, como é o caso de “O Evangelho das Enguias” (Objectiva, 2019), um livro surpreendente que se lê de um fôlego.
Comecemos pelo título. Literalmente, a palavra evangelho significa “boa mensagem”. Se entendermos evangelho como um género literário, nele encontramos um vasto conjunto de discursos, parábolas, testemunhos e relatos, de paixões e de ressurreição. E será que encontramos tudo isto durante a leitura de “O Evangelho das Enguias”? Mas que livro é este? Biográfico? Ensaio? Científico? Se fosse um livro, científico esclarecer-nos-ia sobre os múltiplos mistérios da enguia: “É um peixe ou algo completamente diferente? Como se reproduz? Põe ovos ou dá à luz crias vivas? É uma criatura sem sexo? É uma criatura com dois sexos? Onde nasce e onde morre?”. Algumas destas questões são elucidadas, mas não é um livro científico.
Patrik Svensson tranquiliza os mais curiosos apresentando os estudos de Aristóteles, o interesse do jovem Freud em resolver o enigma da sexualidade da enguia – “não há testículos de enguia que se queiram deixar apanhar, e Freud fica cada vez mais frustrado” -, do zoólogo Carl H. Eigenmann ou do famoso biólogo dinamarquês, Johannes Schmidt, que foi “apanhado pela questão da enguia, pelo grande mistério de onde a enguia europeia se reproduz, como nasce e como morre. A meu ver, escreveu ele, a história de vida da enguia, em toda a sua peculiaridade, não é superada por mais nenhuma espécie do reino animal”. Contudo, o substancial do livro está para além da classificação do género literário, das investigações realizadas e dos segredos desvendados. Metamorfose: é este o conceito que ilumina o gosto desta leitura.
Este é um livro sobre a vida. A misteriosa história da enguia cruza-se com a história de vida de Patrik Svensson e, ao longo de dezoito capítulos, numa escrita sedutora e reflexiva, o autor de “O Evangelho das Enguias” evoca a sua vida. A juventude, os silêncios, a cumplicidade partilhada com o pai durante a pescaria – “foi o meu pai que me ensinou a pescar enguia, no ribeiro que corria ao longo dos campos, junto ao que antigamente fora a sua casa de infância”- ponto de partida para questionar enigmas do nascimento, da reprodução, do amor e da morte, da memória. Mas, também, dos lugares que povoam e marcam a nossa existência.
Numa linguagem transparente e simultaneamente metafórica, o questionamento sobre a origem é visível: “Carregava os meus livros de um lado, para o outro, como se fossem documentos de identidade e, quando alguém perguntava de onde eu vinha, aprendi a responder de forma breve e furtiva”. Num tom intimista, Patrik Svensson confessa-nos que “a nossa origem é algo que nos caracteriza, quer queiramos, quer não, e que uma pessoa que não conhece as suas próprias raízes, estará sempre, em certa medida, um pouco perdida”. Tal como a enguia que migra para o Mar dos Sargaços para desovar, para dar vida a novas vidas, também nós procuramos o nosso Mar dos Sargaços. Trata-se de “uma viagem longa e ascética, navegada com uma consciência existencial que não pode ser explicada. Contudo, uma vez no Mar dos Sargaços, a enguia encontra, mais uma vez, o seu lar”. É uma viagem de descoberta da nossa identidade. Afinal, poder-se-á saber o que é uma enguia, quais os seus verdadeiros mistérios? Ou que mistérios se escondem em cada um de nós?
Patrik Svensson nasceu em 1972, na Suécia, onde vive com a família na cidade de Malmö. Fascinado pela enguia desde muito jovem, Svensson, jornalista de artes e cultura no jornal Sydsvenskan, encontrou na escrita deste livro uma forma de homenagear o pai.
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