Costuma dizer-se, entre a técnica motivacional e a crendice popular, que à terceira é de vez. No caso de Hilary Mantel, pelo menos no que a Thomas Cromwell diz respeito, a terceira foi vez para esquecer. Após ter arrematado dois prémios Booker pelos dois primeiros livros que escreveu sobre o jovem de origens humildes que ascendeu aos píncaros do poder, “O Espelho e a Luz” (Editorial Presença, 2020), livro que encerra a trilogia, ficou de mãos a abanar. Prémios à parte, o volume mais expansivo – perto das 900 páginas em letra miudinha – é aquele que faz uso de uma linguagem mais poética e uma verve algo Shakespeariana, no qual Cromwell enfrenta um inimigo difícil de travar: uma consciência com peso a mais.
O livro tem início em Maio de 1536, logo após a decapitação de Anne Boleyn por um executor francês contratado. Depois de nos contar, em modo épico, a ascensão triunfante de um homem que muitos dizem ser mais poderoso e influente que o próprio rei, Hilary Mantel relata agora a sua queda, acompanhando o período que vai de 1536 a 1540. Mostra-nos, também, uma figura que vai muito além daquilo que os manuais de história foram contando. Para além da ganância e da sede de poder, e à boleia de historiadores com espírito revisionista como Geoffrey Elton, Mantel acrescenta também a boa governância, bem como o lançamento das bases que permitiram a reforma inglesa, como a criação de um estado burocrático, o poder atribuído ao parlamento ou a luta pela criação de hospitais. Uma figura que Mantel torna humana, e na qual nos reconhecemos com todas as suas ambiguidades e anacronismos. Uma vez que os buracos históricos são muitos, Mantel teve rédea livre para preencher os espaços, e é graças à sua imaginação que o leitor tem motivos de sobra para festejar esta trilogia histórica de grande fôlego.
Thomas Cromwell atingiu o pico, um barão com acesso mais do que directo ao rei e uma influência tremenda nos corredores da igreja, tentando forçar a independência em relação ao Papa – tem como plano uma tradução da Bíblia para inglês. A sua grande tarefa continua, porém, a de fazer feliz o rei, que vai trocando de mulheres deixando a Cromwell a tarefa de lidar com as chatices – no caso de Ann Boleyn, foram mesmo muitas. Uma tarefa que obriga Cromwell a lidar com as emoções sempre voláteis de Henry VIII, seja com a ansiedade de deixar ao mundo um herdeiro legítimo, o não lidar bem com o facto de estar a ficar mais velho e mais gordo ou os acessos de raiva difíceis de controlar.
Esconder o desagrado para com o rei e a sua sede sanguinária torna-se um fardo, ele que critica quase abertamente os rumores de que Henry estará a pensar num regresso à igreja. Cabe-lhe a si pensar uma nova Inglaterra, em desenhar as alianças – ou rejeitar algumas – que serão mais profícuas, até cair em desgraça e enfrentar a ira final de Henry VIII.
Mantel encerra aqui uma trilogia onde redefiniu por completo o que é e pode ser o romance histórico, com uma prosa onde há muito lirismo mas, também, uma coloquialidade tipicamente britânica. Poder, sexo, lealdade, amizade, religião, classe e muita política, num livro que fecha de forma brilhante esta espécie de biografia de Thomas Cromwell e de um tempo histórico muito agitado. Ofereçam a Mantel um Booker de consolação.
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