Um velho lexicógrafo obeso, fumador de cachimbo, apreciador de criptogramas e amante de cerveja, que usa lunetas e caminha apoiado em duas bengalas, não é o tipo de figura detectivesca que normalmente se esperaria encontrar numa investigação criminal. Porém, é assim que podemos descrever Dr. Gideon Fell, concebido por John Dickson Carr (1906-1977) para protagonizar uma série de romances policiais, o primeiro dos quais se intitula “O Enigma da Virgem de Ferro” (Livros do Brasil, 2021).
Nascido nos Estados Unidos, o autor fixou-se em Inglaterra em 1931, na sequência do circuito pela Europa que empreendeu após terminar os estudos liceais. Sabendo isso, é interessante notar que esta obra, que ressurge agora na Coleção Vampiro, quase 90 anos após a publicação original, em 1933, começa com a chegada a Inglaterra de um americano, Tad Rampole, em trânsito pelo mundo depois de sair da universidade. Um professor recomendara-lhe que visitasse o Dr. Fell, e a viagem até ele é marcada pelo encontro casual com uma jovem por quem se apaixona à primeira vista. Por acaso, a jovem pertence a uma família que carrega o peso de tradições antigas e uma alegada maldição: todos os herdeiros da propriedade de Chatterham morrem com o pescoço partido.
A propriedade em causa está em ruínas, mas foi outrora uma prisão infernal, onde as epidemias e a violência fizeram incontáveis vítimas. Há ainda a agravante de ter sido construída sobre a Pedra das Bruxas, onde se enforcavam feiticeiras, além de malfeitores comuns. A família Starberth detinha as terras e fornecia governadores à prisão. Até ao presente em que a intriga se desenrola, é esperado do herdeiro que, no seu vigésimo quinto aniversário, entre na prisão, passe uma hora no Quarto do Governador e abra um certo cofre. É este o ritual que o irmão da jovem referida está prestes a realizar.
O livro, elevado ao estatuto de clássico por um protagonista peculiar e um enredo deliciosamente intrincado, tem um forte pendor gótico, não faltando morcegos, ratazanas, teias de aranha, corredores labirínticos e portas ferrugentas na antiga prisão. Este ambiente sombrio contrasta com a placidez luminosa do campo que envolve a casa do Dr. Fell, onde há plantas verdejantes e pássaros a chilrear. Embora o visitante americano sinta que “a terra é velha e enfeitiçada” em Inglaterra e o próprio Dr. Fell reconheça que habita numa região “onde as gentes vêem coisas depois do pôr do sol”, felizmente para o leitor, nenhum dos dois abdica de usar a razão para lançar luz sobre mistérios que parecem indecifráveis.
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