Comecemos pelo essencial. A trilogia dos lugares sem nome, assinada por João Tordo, está entre o melhor que a literatura portuguesa nos ofereceu nos últimos vinte ou trinta anos. Uma obra que, à vertigem da escrita, junta a magia da criação literária, construindo labirintos onde, depois de se derrotar o Minotauro, se sai do outro lado em estado de Nirvana.
Se “O luto de Elias Gro” e “O paraíso segundo Lars D.” pareciam ser obras desconexas, peças que entre si partilhavam apenas um mesmo estado de melancolia, “O deslumbre de Cecilia Fluss” (Companhia das Letras, 2017) vem juntar tudo sob um novo prisma, fazendo-nos olhar para a vida como um lugar de amor e desolação, tratando de acolher “a imundície humana e a insuportável beleza deste mundo como acolhemos o cálice de uma flor que sabemos morta de antemão, mas que sangra, porque está viva, porque está morta, porque está viva“.
“Ainda penso nela assim, como uma coisa selvagem“. As palavras são de Matias sobre a sua irmã Cecilia, que um dia decidiu atirar-se de uma ponte roída por uma paixão que não cabia dentro de si, arrancando em Matias o último traço de inocência.
Aos 14 anos, Matias Fluss é um adolescente como poucos outros, que se entretém com o prazer da masturbação, que cuida e aprende com o tio enlouquecido e que vê nas fábulas e ensinamentos budistas a solução para uma melancolia que o rói por dentro depois do desaparecimento da irmã, com quem vislumbrou a primeira centelha de amor e desejo.
Do tio Elias parece ter herdado quase tudo, “incluindo esta devastadora inclinação para o esquecimento“. De um professor atento e dedicado aprendeu que a busca incessante pelo equilíbrio é uma missão para a vida, mas também que Kumbhanda, o fantasma dos testículos gigantes, poderá não ser a melhor história para se contar a uma miúda com quem se quer passar um bom bocado.
Na segunda parte do livro, o registo de quase diário dá lugar ao romance, onde Matias surge agora como uma personagem, obrigado a revisitar uma dor que nele se aloja há décadas, originada por “uma adolescência que não era capaz de ultrapassar e cujo eco destruíra, por contágio, uma parte substancial das suas ambições, frustrando as repetidas tentativas de felicidade“. Um regresso motivado por uma carta, que vem baralhar tudo o que havia desenhado em torno do desaparecimento da irmã, e que o obriga a ir em busca de dois fantasmas: o da irmã e também o seu.
Há ainda uma terceira parte, contada na primeira pessoa por uma aluna de Matias, que embarca com ele e com o tio Elias nesta incerta confrontação do passado: “Estou consciente de que partilho os meus dias com dois lunáticos, maníacos, excêntricos, mas essa é precisamente a parte de que mais gosto, estar à mercê de pessoas para quem a vida não é um monótono corredor, um espartilho, mas o insuportável labirinto de Creta, onde são diariamente perseguidos pelo Minotauro. É como se corrêssemos de olhos vendados“.
E será também de olhos vendados, entre os ensinamentos budistas – e uma certa atmosfera Siddharthiana – e a descrença nas vivências humanas, que acompanharemos um homem no resgate de si próprio, aceitando a finitude e descobrindo aquilo que nos une enquanto seres humanos. No final, quando todas as peças se encaixam, restará ao leitor agradecer a João Tordo por esta deslumbrante epifania.
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