“«Somos livros gastos, sem capa, do lado de fora ninguém vê do que tratamos», diz a Hanna, e rimo-nos da nossa noção de insignificância.”
Na escrita peculiar e evocativa de Marieke Lucas Rijneveld (Man Booker International Prize 2020), recuamos com “O Desassossego da Noite” (Dom Quixote, 2021) à época dos tazos e dos walkmans, numa fria paisagem rural onde 3 irmãos, Os Reis Magos, se perdem no desassossego que é o abandono familiar após a morte de um outro irmão mais velho, Mathhies. Com uma voz invulgar e um pensamento complexo e criativo somos levados pela mão de Cas, que nos conduz por uma infância afogada em desapego, conservadorismo, violência e vergonha (e bosta de vaca), sentimentos associados à descoberta do crescimento e ao mistério da morte e do luto. Os episódios oscilam entre a ternura, o lado visceral do meio rural e a palavra de Deus.
“«Um dia quero viajar para mim mesma», digo baixinho e carrego no pionés para dentro da carne macia do umbigo. Mordo o lábio a fim de não fazer barulho, um fio de sangue sai em direcção ao elástico das cuecas, penetra no tecido. Não ouso retirar o pionés, como medo de o sangue esguichar para todos os lados e em casa ficarem a saber que não quero ir ter com Deus mas comigo mesma.”
A atmosfera que a escrita de Rijneveld cria é imediata, capturando o leitor para a imaginação prodigiosa e telúrica de Cas, mas também para o evento tenebroso e infindável que é a morte e o luto por um irmão – e a forma tentacular como isso vai sugando a vida desta família: “Só conhecíamos a faina da terra e não a que existe em nós”.
“Olhei para as minhas mãos, para as suas linhas irregulares. Ainda eram demasiado pequenas para as usar sem ser para agarrar. Agora ainda cabiam nas mãos do pai e da mãe, mas as do pai e da mãe não cabiam nas minhas, era essa a diferença entre eles e eu: podiam pô-las à volta do pescoço de um coelho ou agarrar num queijo acabado de virar no banho de salmoura. As mãos deles eram ávidas, mas, se já não conseguissem segurar carinhosamente uma pessoa ou um animal, mais valia largarem-nos e focarem-se noutras coisas.”
O desassossego do luto é tal – “de momento, os buracos de gelo situam-se sobretudo nas nossas cabeças” – que o foco familiar se desvia para as vacas e o revolver da terra, enquanto Cas e os irmãos, Hanna e Obbe, se tentam amanhar: “os Reis Magos voltaram a montar os camelos sozinhos, apesar de a sela já ter desaparecido há muito, cavalgamos sobre o pelo áspero e temos o rabo esfolado do terreno acidentado”. Acidentada talvez seja a palavra de ordem para descrever o dia-a-dia destas crianças que, entre metáforas da vida agrícola e o descortinar dos salmos, vão desabrochando. Tudo narrado habilmente por Cas, enquanto tenta “compreender como aumentar o prazo de validade da sua família“, surpreendendo o leitor com as comparações de que é capaz de ter nos seus (ainda) ternos doze anos, referindo-se ao mutismo da mãe, que fica com os lábios cerrados como duas lesmas quando acasalam, ou o pai que, cego de raiva, tem os olhos pretos e contraídos como caganitas duras de coelho. Ou ela mesma, Cas, que se sente como uma lista de compras usada e amarrotada, à espera que lhe voltem a tocar e alisar.
“Tal como no Velho Testamento, também eles repetem infinitamente as mesmas palavras, o mesmo comportamento, os mesmos padrões e rituais. Mesmo quando nós, seus seguidores, nos afastamos cada vez mais deles.”
São muitas as perguntas que esta narrativa levanta, questionando a fé no abstracto quando o que é palpável e próximo se afunda mesmo diante dos olhos, o peso da morte e da culpa, o quão frágeis e vulneráveis são os que “sobram” a essa morte, ficando com as recordações e o dever de honrar. Mas “sobra”, também, o direito a um futuro, ainda por construir e para o qual precisam de amparo. Questiona-se tanto ou mais o corpo e a sua necessidade de proximidade, afecto e respeito; ou o direito a chorar, a lembrar e a falar do que se sente.
“Na perda encontramo-nos e somos quem somos: seres vulneráveis como filhotes de estorninhos nus, que caem do ninho e esperam ser apanhados. Choro pelas vacas, choro pelos Reis Magos, por pena, e depois choro por mim, ridícula, vestida com um casaco de angústia, mas depressa volto a limpar as lágrimas. (…) Se as lágrimas tivessem cheiro, ninguém mais choraria às escondidas.”
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