Numa noite quente de agosto, a família Stamm reúne vários convidados na sua mansão nova-iorquina. Um deles, um jovem actor pouco conhecido, mergulha num lago artificial e desaparece. Poder-se-ia pressupor uma morte acidental por afogamento, após bater com a cabeça no fundo ou sofrer uma cãibra, mas a desconfiança declarada entre os restantes convivas e o facto de vários deles terem razões para desejar-lhe a morte, num local dominado por lendas ancestrais, tornam a situação suspeita. Eis a premissa desta obra de S. S. Van Dine, intitulada “O Crime do Dragão” (Livros do Brasil, 2020), publicada pela primeira vez em 1934 e agora reeditada na Colecção Vampiro.
O protagonista é Philo Vance, o sofisticado detective concebido para desvendar os crimes mais rebuscados através do seu apurado poder de dedução. A história é narrada pelo seu amigo S. S. Van Dine – pseudónimo do escritor Willard Huntington Wright (1888-1939) –, que o acompanha de perto, servindo-o como consultor jurídico e administrador financeiro. Se compararmos Vance a Sherlock Holmes, Van Dine será um Watson tão silencioso e discreto que quase passa despercebido.
Como outros detectives fictícios, Vance tem relutância em partilhar suspeitas com a polícia na fase inicial de investigação, preferindo esperar até ficar senhor de todos os factos, para poder então apresentar as suas conclusões. Trata-se de uma daquelas personagens cujo raciocínio permite descobrir a verdade pela associação de indícios que estão à vista de todos, mas nos quais poucos reparam. Todavia, isso não o impede de reconhecer que “o mundo não é governado pela lógica”, nem de se deleitar com os aspectos mitológicos que envolvem a intriga.
Abandonar o senso comum parece ser necessário perante um caso que se desenrola numa zona descrita como um anacronismo no seio de Manhattan, separada do resto do mundo por uma natureza selvagem, onde as histórias de dragões que os índios transmitiram aos primeiros colonos britânicos ecoam nas casas em ruínas. A mansão dos Stamm, sendo uma das mais antigas da cidade, tornou-se um “local soturno, cheio de sombras, impregnado de mofo”, que Vance considera “um lugar magnífico para cometer um crime”. Para compor a atmosfera gótica da história, não falta sequer uma matriarca louca para quem o dragão é a figura tutelar da família, que lhe protege a fortuna e guarda tanto os vivos como os mortos. Não foi por acaso que o lago onde o actor desapareceu ficou conhecido como Piscina do Dragão.
Apesar de ser um dandy ligeiramente cínico, Vance deixa-se maravilhar pelo fantástico. Não é sobredotado em termos de acumulação de conhecimento, mas tem uma vasta biblioteca e faz bom uso dela para decifrar o mistério, nunca abdicando do uso da razão. O leitor poderá tentar fazer o mesmo, seguindo a intriga inteligente deste clássico da literatura policial que vale a pena (re)descobrir.
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