“O Coração de Inglaterra” (Porto Editora, 2019) propõe uma viagem às vísceras de um país, com tudo a que se tem direito numa imersão do tipo – visões e odores quentes e intensos, que aconselham os mais sensíveis a protegerem-se para melhor gerirem a riqueza de uma verdadeira mesa de dissecação.
Em tempos de David Cameron e das suas políticas, uma família inglesa heterogénea, com posições diferentes relativamente à identidade e ao futuro do país, algures entre disposições liberais e conservadoras, questiona-se e gere a incerteza do país, do Brexit, da sua própria identidade, da euforia e da depressão.
Benjamin é um escritor de meia idade, retirado do bulício urbano, reflexivo e compassivo. O seu pai, recentemente viúvo, é mordaz e crítico, adepto de um conservadorismo intenso. Sophie é a sua jovem sobrinha, cosmopolita e adepta da diversidade. Tem também um amigo jornalista e as suas fontes no 10 Downing Street, de onde saem informações e especulações, um verdadeiro de cocktail de conflitos, debates e negociações. Os acontecimentos políticos sucedem-se e impactam na vida de cada uma das personagens, as quais se revelam capazes de nos teletransportar para o epicentro de uma bomba relógio, relativamente à qual se desconhece o tempo e o elemento de detonação. Onde terá ficado o reconhecido amor inglês pela moderação, a nação politicamente pragmática e tolerante?
Jonathan Coe traz-nos o retrato de uma sociedade zangada, de gente emocionalmente vazia que usa a ira como estímulo emocional. Uma sociedade dividida, com opiniões diferentes, gente que, embora vivendo no mesmo país, parece fazê-lo em universos diferentes, separados por um muro constituído por medo, desconfiança, vergonha e embaraço. Sucederam-se as manifestações de desagrado levadas a cabo pelos mais diversos segmentos da sociedade britânica, expressa em tumultos nas ruas, acções de boicote a iniciativas públicas ou, tão só, acesas discussões privadas, facilmente se constatando a fragmentação do colectivo.
É impressionante a habilidade de Coe para demonstrar com simplicidade e clareza formas de sentir e expressar emoções, considerando que “a Grã-Bretanha tem vivido demasiado apaixonada pela sua própria mitologia, não se olhando de forma realista, parecendo ser essa a raiz do Brexit: a colisão entre o mito e a realidade. “
Pese embora considere ter tido uma grande crise de confiança quando escrevia “O Coração de Inglaterra” – lançado em novembro de 2018 e publicado um ano depois em Portugal -, Jonathan Coe prosseguiu com a série já composta por “O Rotters Club”, de 2001, e “O Círculo Fechado”, em 2004, existindo nele personagens que lhes são comuns.
Não se considerando um escritor de romances políticos, numa entrevista publicada pela revista Ler (edição outono 2019) Coe deixa transparecer um posicionamento segundo o qual este seu último romance é um exercício de confrontação entre a história e a realidade, a idealização e o pragmatismo coletivo, um romance melancólico e de certo modo zangado, ao mesmo tempo que contém mais comédia do que qualquer outro romance seu – o que mais próximo estará do seu verdadeiro eu. Uma narrativa sobre famílias e relacionamentos afectivos, sobre emoções e memória, com política e muitos eventos políticos à mistura, explorando o seu impacto na vida das personagens. Um exercício de demonstração de como o os acontecimentos públicos se entrelaçam com as vidas privadas, tirando partido de múltiplas personagens, gerações, níveis e fios narrativos, interligando o colectivo e o individual.
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