“When we all fall asleep, where do we go?”. Foi com esta pergunta que a cantora americana Billie Eilish baptizou o seu álbum de estreia. Tal como ela, muitas pessoas interrogam-se acerca do que lhes sucede quando adormecem, e alguns cientistas procuram responder. Um deles é Guy Leschziner, um especialista em Medicina do Sono com um currículo impressionante: além de trabalhar como neurologista em hospitais britânicos, é professor universitário de Neurologia, contribui para várias publicações científicas, dirige o Sleep Disorders Centre – “um dos maiores serviços de investigação e tratamento de distúrbios do sono da Europa” – e apresenta, na BBC Radio 4, a série “Mysteries of Sleep”.
Em “O Cérebro Noturno” (Vogais, 2020), Leschziner parte de histórias reais de pacientes seus para divulgar distúrbios do sono e a neurociência que os explica. Como resume a prefaciadora da obra, a Dra. Teresa Paiva, o livro proporciona três “viagens fantásticas”: uma às doenças do sono e suas consequências na vida dos pacientes; outra aos factores biológicos e psicológicos subjacentes; e ainda outra à história da evolução do conhecimento científico.
Os casos apresentados vão desde doenças que julgamos conhecer, como a apneia do sono, até síndromes raros, passando por situações bizarras de sonambulismo. Impressiona pensar que, noutros tempos, as pessoas que assumissem algumas destas experiências seriam declaradas loucas, ou vítimas de possessões demoníacas. Mesmo nos dias de hoje, uma das pacientes do Dr. Leschziner foi aconselhada pela mãe a rezar para que os seus problemas desaparecessem (o que não sucedeu). É igualmente fácil imaginar que alguns adolescentes aqui descritos pudessem, noutros contextos, ser simplesmente considerados preguiçosos ou mal-educados, em vez de lhes serem diagnosticados distúrbios passíveis de tratamento.
Mesmo nos casos mais simples, há informação importante a reter. Por exemplo, está provado que a relativamente vulgar apneia do sono pode originar diabetes, tensão arterial elevada e deterioração dos vasos sanguíneos.
Devido a razões éticas, os investigadores estão limitados nas experiências que podem fazer com o cérebro humano, por isso os avanços nesta área têm dependido muito da análise dos casos patológicos que surgem. Além disso, a raridade de algumas doenças dificulta a realização de ensaios clínicos. Todavia, é hoje possível afirmar que a vigília e o sono profundo são extremos de um espectro de estados cujas fronteiras nem sempre são claras. Os mamíferos aquáticos, como os golfinhos, dormem com metade do cérebro de cada vez, pois não podem deixar de nadar para irem respirar à superfície da água. Nos humanos, não há este desfasamento dos hemisférios cerebrais, mas é possível que partes do cérebro responsáveis pelo movimento e pela emoção acordem, enquanto as que influenciam a memória e o pensamento racional continuam a dormir, o que explica muitos casos de sonambulismo.
Outra ideia que o livro reforça é que o cérebro e a mente não são entidades separadas, influenciando-se mutuamente de maneiras que ainda estamos apenas a começar a entender. Embora o autor assuma humildemente que existem muitas perguntas para as quais não conhece respostas, o seu entusiasmo pelo desbravar dos mistérios do sono é perceptível e torna esta obra fascinante.
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