Na introdução a “Miss Bengalore” (Arte de Autor, 2020), álbum de banda desenhada que conta com desenhos de Félix Delep e argumento de Xavier Dorison, este último presta o devido tributo a “O Triunfo dos Porcos” (1945), livro maior de George Orwell que, através de uma fábula com animais, narrava a principal tragédia da sua época: “o processo de confiscação dos ideais democráticos por ditadores sanguinários”. Um tragédia presente em todas as ditaduras, sejam elas as do passado, do presente ou de um tempo que ainda está por cumprir.
Porém, apesar de reconhecer que Orwell conhecia detalhadamente o processo de instalação das ditaduras – e que as terá visto, combatido e compreendido -, Dorison é da opinião de que este não terá chegado a compreender tudo – ou, pelo menos, a não querer olhar para lá do negrume. Dorison dá alguns exemplos, de diferentes geografias e momentos temporais, que culminaram com o abatimento de ditaduras: “Na Índia, um homenzinho frágil – «um faquir seminu», como lhe chamou Churchill – alcançou o impossível. Nos Estados Unidos, um pastor negro deu a vida pela igualdade entre os homens de cor e os brancos. Na África do Sul, um condenado político conseguiu, pelo seu exemplo, a reconciliação «impossível» entre negros e africânderes e evitou o banho de sangue considerado «inevitável». Na Polónia, um siples electricista fez curvar o poder. Na Sérvia, os jovens da Otpor libertaram o seu país de um ditador sanguinário…”.
O Castelo dos Animais, série que será composta por quatro volumes e da qual “Miss Bengalore” é o volume inicial, parte claramente do universo Orwelliano construído em “O Triunfo dos Porcos” mas, segundo Dolon, pretende percorrer “uma via estreita, perigosa, incerta, mas bem real, para um mundo melhor”. Ou seja, incutir aquela esperança que nunca fez parte do mundo de George Orwell, que parecia não ter grande fé nos instintos e apetites humanos após a tomada do poder e o seu deslumbramento.
A história tem lugar num castelo que, depois de ter sido abandonado pelos homens, foi transformado em quinta pelos animais que, entregues a si próprios, fundaram uma república destinada a perpetuar a liberdade recém-adquirida. Aos poucos, porém, a ditadura foi-se instalando, num regime liderado pelo presidente Júlio, um touro enorme que vai mexendo os cordelinhos quase sempre dos bastidores e que, através da permanente ameaça de lobos famintos, instalou o medo e a dependência, aniquilando quase por completo toda a ideia de revolta ou do questionamento da autoridade. Para manter a ordem e a população em sentido conta com uma milícia de cães cruéis, que tratam de afastar pela força qualquer discórdia que ameace abalar o regime.
As coisas parecem mudar quando um rato, de passagem pela quinta no seu teatro itinerante, começa a contar histórias subversivas que constroem pontes entre a ficção e a realidade, fazendo com que alguns animais passem a sonhar com a mudança e uma revolta não-violenta contra a repressão: Miss B., uma gata que faz um trabalho de mula e que é, de certa forma, a alma invisível deste castelo; Margarida, a gansa altruísta; ou César, um coelho que tem o escapismo de um dealer e a manha de um empreendedor.
Primeira parte de uma tetralogia, que será completa com os volumes “As Margaridas do Inverno” – já disponível nas livrarias -, “A Noite dos Justos” e “O Sangue do Rei”, “Miss Bengalore” é uma BD política que, movendo-se no território da fábula, dá visibilidade à injustiça, mostrando o medo como o sentimento dominante das ditaduras. Uma série que tem tudo para se tornar numa BD de culto.
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