A Companhia das Letras continua a reeditar a obra de João Tordo e, dez anos depois do seu lançamento original, chegou às livrarias uma nova edição de “O Bom Inverno” (Companhia das Letras, 2020 – reedição), romance escrito dois anos depois de “As Três Vidas” – esse livro fundador que valeu a João Tordo a conquista do Prémio José Saramago, lançando-o numa travessia literária onde, entre outros títulos, descobrimos a recomendada, melancólica e melodiosa trilogia dos lugares sem nome ou, um pouco mais tarde, o bem desenhado “Ensina-me a voar sobre os telhados”.
O narrador desta história é um escritor frustrado e falido, entalado num momento de procrastinação que parece durar há uma vida, e que sonha com escrever a obra magistral que lhe faça finalmente justiça. Se a isto juntarmos uma hipocondria à boleia do Dr. House, com direito ao uso diário de uma bengala para amparar uma dor imaginária, temos o retrato de um escritor descrente na literatura e numa missão que, a certa altura, julgou ser a sua.
A letargia acaba por ser quebrada quando, durante um encontro literário em Budapeste, se vê convidado por um escritor italiano para passar alguns dias numa pequena cidade de província na costa de Itália, no meio de nenhures, pertencente a Don Metzger, um excêntrico personagem e um dos maiores produtores de cinema da actualidade – que, para além do cinema, mostra uma devoção muito particular por balões de ar quente.
“O Bom Inverno é como o Metzger chama ao Verão em Itália. O tipo tem uma propriedade no Sul do país, algures entre Nápoles e Roma, próximo de uma pequena cidade costeira, chamada Sabaudia. (…) Sabaudia é um lugar estranho, que cai algures entre o cinema realista italiano aprovado pot Vittorio Mussolini, filho do grande ditador, e o melhor surrealismo de Fellini. Difícil de explicar. A cidade foi mandada construir por Mussolini em cima de uma vasta extensão de pântanos drenados. A construção é pura arquitectura do regime fascista e muitos dos seus habitantes são… Bem, são velhos amargos e saudosos dos tempos da ditadura apenas porque nessa altura ainda eram novos, como os adultos às vezes são saudosos dos tempos da adolescência. E, ao mesmo tempo, Sabaudia foi também estância de férias do Pasolini e do Moravia.”
É neste lugar bizarro, numa casa onde há cogumelos a crescer nos cantos, que se irá desenrolar uma trama policial que cruza o enredo a la Agatha Christie com o requinte sádico de um Jogos da Fome, onde o papel de Poirot será entregue a Andrés Bosco, o gigante catalão responsável pela construção dos balões de ar quente que tem a fibra de um Schwarzenegger.
Após a tragédia, Bosco desaparece de vista e monta o cerco à casa, determinado a descobrir o(s) culpado(s), sempre de olho na mira telescópica não se dê o caso de alguém tentar furar o cerco. Cada um dos suspeitos terá de escrever a sua própria versão da noite do crime, indicando aquele que consideram o principal suspeito do crime, cabendo a Bosco decidir e executar a sentença.
“A verdade é uma miragem tragicamente limitada pela condição humana”. É este o ângulo morto que, nesta narrativa, deixa o próprio narrador – e, com ele, o leitor – às cegas, numa história onde o destino surge como alibi e o mal se torna algo familiar. Um tempo de morte e de recomeço, onde descobrimos o poder de efabulação de Tordo e a sua grande capacidade de criar um enredo que contempla todos os grandes mistérios e inquietações da experiência humana.
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