“Embora se tivessem passado trinta anos, Peter sente-se renitente em ensombrar o nome do mestre. No seu íntimo, ainda ama o louco, Gutenberg, aquele génio ardente e brutal que derrubou tanto quanto criou – que recolheu crédito, sempre, independentemente de lhe ser ou não devido. Ele concebeu a arte e forjou as letras de metal antes de qualquer outro, isso ninguém poderá negar com razoabilidade. Mas sem Peter e o pai, a grande Bíblia nunca teria sido feita.”
Já todos os amantes de livros se questionaram, em algum momento, sobre a invenção que revolucionou o mundo da leitura, permitindo que o rumo da história nos conduzisse à produção de livros em massa. Se é certo que o nome que assalta à nossa mente assim que ouvimos falar da invenção da prensa é o de Gutenberg, fica também certo, depois da leitura do romance de estreia de Alix Christie, que aquele que intitulamos de génio não esteve sozinho.
“O Aprendiz de Gutenberg” (Saída de Emergência, 2016) embarca-nos numa viagem pela Idade Média, uma altura em que ser escriba era uma carreira prestigiante e a única forma de disseminar a palavra e o conhecimento. No tempo em que “os escribas manchados de tinta eram como um poderoso exército, fileiras de anjos em movimento”, pensar que uma máquina executasse esse trabalho divino era considerado uma blasfémia, uma “arte negra”.
Peter é um jovem prestes a alcançar o sucesso como escriba em Paris, até o seu pai adoptivo, o rico mercador Johann Fust, o ordenar aprendiz de Gutenberg, na cidade de Mainz. Não foi fácil para Peter aceitar este “casamento” entre a metalurgia e a escrita mas, aos poucos, tomou consciência das repercussões do projecto ousado, acabando completamente absorvido e fascinado pelo génio que começou por lhe dar vida, mesmo com seu característico temperamento difícil.
De arte negra a dádiva, ao tornar um texto idêntico em todas as cópias, livre de erros, o leitor vai acompanhando todo o processo de invenção, “imprevisível e longo”, e para o qual cada um à sua maneira foi essencial. Desde a descoberta da liga metálica ideal, ao aperfeiçoamento de forma à prensa “beijar as letras em vez de as esmagar”, até à escolha da Bíblia Sagrada como primeiro livro a ser produzido, o caminho é marcado por sucessivos avanços e recuos que o dotam de grande autenticidade.
“Imagina como seria o mundo se qualquer pessoa pudesse comprar um livro” – a frase que arrebata qualquer entusiasta da leitura. É esse caminho que aqui trilhamos, juntamente com Gutenberg, o seu aprendiz e Fust, o financiador da oficina, bem como todos os que aí trabalham, fazendo cair o mito de Gutenberg como inventor único da prensa.
Pleno de informações históricas, este é um livro que cativa pelo mistério constante, por nos fazer perceber que o secretismo era condição fundamental para tornar real a invenção, ficando também bem assente o poder da igreja, as traições e a corrupção.
É muito interessante ver como Peter ultrapassa uma “crise de fé” ao pôr de parte a profissão de escriba – em que a sua mão é vista como uma ferramenta de Deus – para abraçar uma invenção que põe em causa essa mesma profissão, mas que ele quer acreditar que talvez seja “o que Ele queria”. A evolução das personagens é, sem dúvida, um ponto forte, aliado à aura de secretismo e mistério que paira em toda a obra.
Com “O Aprendiz de Gutenberg”, Alex Christie homenageia não só uma das inovações mais importantes da história da humanidade – talvez a mais revolucionária desde a invenção da roda –, prestando também um tributo à livre circulação de ideias e de conhecimento.
“Até àquele dia, o pai vira a prensa apenas como um conjunto de mãos muito mais rápido. O mestre, por seu lado, era impulsionado pela sua visão de infinita replicação, de fazer muitos a partir de um. Nessa noite, quando lhes mostrou a prova a ambos, compreenderam que aquilo era muito, muito mais”.
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