Na última edição do Festival Literário de Castelo Branco, numa mesa onde se tentava delimitar o espaço geográfico reservado ao conto, o escritor Jacinto Lucas Pires disse qualquer coisa como isto: “Não sinto que o conto seja um meio caminho entre o poema e o romance”. Em “O Amor em Lobito Bay” (Dom Quixote, 2016), Lídia Jorge une os dois mundos dinamitando qualquer fronteira entre ambos, para criar uma literatura híbrida que tanto tem de dança como de passeio. É, aliás, a própria escritora que revela a sua missão na contracapa do livro:
“Em termos de género, o conto é um híbrido. Ele promove os dotes copiosos da narrativa mas dirige-se para a forma sucinta do poema. Gostaria que os meus contos, oscilando entre uma e outra forma, contivessem filmes de acção no seu interior, e ao mesmo tempo se aproximassem da música livre, sucinta, feita com um mínimo de palavras.”
Ao todo temos nove contos habitados pela inquietação, situados entre a tranquilidade e a violência extrema, cada um deles escondendo uma ponta solta ou, mais concretamente – ou poeticamente -, uma parábola.
Em O Amor em Lobito Bay, conto que dá título à colectânea – e provavelmente o mais luminoso -, um professor recorda a sua infância e um estranho rumor que corria entre a pequenada: “Aquele que comesse o coração de uma andorinha em pleno vôo, tornar-se-ia o maior corredor do mundo.” Um conto onde a infância é, de súbito, abalada pela chegada da guerra, mas que mostra que, apesar de estar sujeito à violência inevitável do mundo, cada um pode decidir sobre a violência que habita dentro de si; em Overbooking há homens bons e mulheres ainda melhores, mas o narrador avisa – e insiste – que tem “uma coisa má para contar”. E, de facto, aquilo que começa com uma aventura de rapazes acaba por enveredar para um “Senhor das Moscas” à beira de uma 4L, onde se pressente uma culpa sem aparente expiação; O Tempo do Esplendor faz-nos recuar ao “tempo das grandes casa para três pessoas, o tempo das criadas, o tempo da água não canalizada, o tempo dos jardins domésticos com lagos e peixes vermelhos, o tempo dos professores de latim como era o meu pai”, num conto que gira à volta de um lenço bordado com peixes e uma sereia (e um ar de bruxedo); Imitação do Êxodo poderia servir de guia ao ensino público e privado – e familiar -, num mundo onde as crianças deviam ser colocadas “tanto diante das realidades limitadas quanto das paisagens livres, para que se apercebam, desde cedo, que a vida dos homens é uma agulha oscilante entre extremos”; Passagem para Marion move-se entre o acaso e as impressões digitais de Deus, oferecendo passagens tão felizes quanto esta: “A divagação sobre a coincidência é a filosofia dos pobres”; Um Rio Chamado Mulher faz uma viagem até à cidade de New Orleans, terra de boa música e também de Faulkner, revelando uma guia sui generis onde “tudo é longo” e que, a cada bar que passa, recebe um copo com uma bebida branca. Mulher essa que ajuda a alimentar a camada de sombra que cobre pessoas e casas: “Pois que vale uma cidade, se acaso não alimenta os mitos sobre os quais acorda todas as manhãs e se deita todas as tardes?”; em Novo Mundo há um engenheiro que se fez padre e uma estranha proposta para a recuperação de um telhado de uma catedral, onde cada uma das telhas apresentará o nome do benfeitor; a partir da alternância entre o preto e o branco de uma limusine, Dama Polaca Voando em Limusine Preta viaja no banco de trás para um percurso entre o inesperado e o preconceito, oferecendo uma valiosa lição: “A estupidez, quando aliada à imaginação, perigosamente, alimenta seres selvagens que nos prendem ao solo e nos deixam sozinhos no meio da sombra”; O Poeta Inglês tem um certo toque de Paul Bowles, à volta de um clube privado (e sobretudo secreto) onde abunda a miséria das invejas e os reconhecimentos póstumos.
Sem apontar caminhos ou exercer juízos de valor, Lídia Jorge oferece nestes nove contos parábolas abertas sobre a vida e a morte, colocando na memória o poder redentor sobre o pecado, sempre mergulhada numa sombra tão frágil quanto a ideia de humanidade.
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