“Muito aprendeu naquela breve noite de Verão. Teria pensado que uma mulher morreria de vergonha. Em vez disso, a vergonha morreu. A vergonha que é medo: a funda vergonha orgânica, o velho, o velho medo físico que reside agachado nas raízes do corpo que é nosso, e só o fogo sensual pode afugentar, finalmente desperto e destroçado pela investida fálica do homem, levando-a a ir até ao coração da sua própria selva.”
Colocando no mercado grandes clássicos de literatura portuguesa e estrangeira, numa linha gráfica única e memorável – mesmo o leitor mais distraído reconhecerá estas duas colecções, que se tornam numa só nas estantes das livrarias –, a Guerra & Paz tem-se destacado por trazer obras intemporais aos leitores portugueses. “O Que Fazem as Mulheres”, de Camilo Castelo-Branco, “Os Lusíadas”, de Luís de Camões e “O Retrato de Dorian Grey”, de Oscar Wilde, são algumas das obras lançadas e reforçadas com um belo prefácio, a introduzir o leitor mais leigo à história do livro que tem nas mãos. “O Amante de Lady Chatterley” (Guerra & Paz, 2016) não podia faltar a esta lista literária, quer pela incompreensão que o cercou quer pela natureza do seu enredo.
Como escreve Maria João Madeira, tradutora da presente edição, a história deste livro D. H. Lawrence é relembrada, a cada reedição, “por se tratar de um romance que a incompreensão, a «decência» e os «bons costumes» votaram ao ostracismo durante décadas”. Anteriormente acusado de ser um escritor de contos e romances “sexualmente obscenos”, o enredo de “O Amante de Lady Chatterley” atraiu a atenção da sociedade britânica mais conversadora – e consequentemente puritana -, acabando por ser proibido durante décadas.
Os grandes clássicos da literatura atingem um dos seus principais objectivos: são formas artísticas de contextualizar e retratar uma época passada com fieldade. Nesta obra, tão renegada durante décadas, é retratada a sociedade britânica – tão diferente da atualidade – e, essencialmente, a condição esperada de uma mulher.
Para Constance Chatterley “deixou de haver um caminho ameno para o futuro”, e há que viver “por mais que os céus tenham desabado sobre nós”. Casou-se com Clifford Chatterley, em 1917, e conheceu-o por inteiro por apenas um mês. Ao ser enviado para a Grande Guerra, Clifford acabou por regressar com a metade do corpo inferior completamente paraplégica e volta, com a sua jovem esposa, para o “poiso” da família: Wragby Hall. Constance e a sua irmã Hilda tiveram uma “educação esteticamente não convencional” por terem sido levadas a Paris e Roma para respirarem arte e em direcção a outros interesses, ao serem colocadas em grandes convenções socialistas em Haia em Berlim. Imune à intimidação da arte ou das ideologias políticas, Constance acaba por se ver fechada nas paredes de Wragby no seu papel de enfermeira e cuidadora do marido. Uma rotina que se revela, a cada dia que passa, cada vez mais monótona e desinteressante.
Com o Clifford a depender cada vez mais da esposa, apesar de demonstrar o seu poder “sinistro” sobre todos os outros elementos da sociedade, Connie acaba por encontrar um refúgio em Mellors, o guarda de caça de Wragby. Atormentado pela falta de ingenuidade devido à caótica sociedade em que vive, Mellors acaba por se ligar, aos poucos, a Constance. O amor que os une nasce de uma relação sexualmente satisfatória, em que ambos se querem saciar e explorar os seus corpos. É nesta exploração que a obra acabou por ser mal entendida na época e, referido por Maria João Madeira, André Malraux escreveu, em 1932, que esta obra – e foi graças a esta história que D. H. Lawrence reconheceu a fama ao longo dos tempos – foi a proposta de um novo mito de erotismo, dando à sensualidade “tudo o que, até aqui, era dado ao amor: de fazer dele o meio da nossa própria revelação”.
A presente edição é a estabelecida por D. H. Lawrence e, por conseguinte, a que contém uma linguagem sexual mais explícita. Escreveu Isabel Lucas, num artigo para o Público sobre um movimento estudantil americano a pedir proteção contra o conteúdo de livros perigosos, que “a ideia de que os livros são perigosos é tão antiga como a literatura” e, bem se sabe, foi por isso que esta obra esteve fora dos olhos do grande público durante tantos anos. No entanto, o conhecimento é virtude. O sexo é uma das formas que o ser humano encontrou para conhecer o seu próprio corpo – quais são os seus limites, as suas vontades – e as suas emoções. O conhecimento chegou de tal forma, em pleno século XXI, que os constrangimentos provocados pela exploração do sexo estão ultrapassados – pelo menos há que ter este pensamento. Mas, no final da obra, são as palavras do autor que fazem todo o sentido: “Uma mulher tem de viver a sua vida, ou vivê-la a arrepender-se de não a ter vivido.”
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