Stefan Zweig (1881-1942). Mais do que obra, o autor. Um homem que parece ter escrito na proporção do que viveu, intensamente e de forma comprometida, ao ponto de, a certa altura, decidir tudo parar: de escrever e de viver. Como um dos mais importantes autores europeus da primeira metade do século XX, foi poeta, ensaísta, dramaturgo, novelista, contista, historiador e biógrafo. Há quem destaque na sua extensa obra as novelas “Amok” (1922) e “Confusão de Sentimentos” (1927), a biografia “Magalhães, o Homem e o seu Feito” (1937), o ensaio “Brasil, País com Futuro” (1941) e a autobiografia “O Mundo de Ontem” (1942).
A “Novela de Xadrez” (Livros do Brasil, 2017) foi a sua última obra, concluída pouco antes de se suicidar, a 22 de fevereiro de 1942. No entender de Álvaro Gonçalves, que assina o Prefácio a esta edição, trata-se de uma narrativa curta e compacta, na primeira pessoa, com um narrador intimista, mais próximo do leitor, e um outro, secundário, que virá a ser o protagonista da narrativa. A resignação ou a forma como este capitula no final da história é uma dupla metáfora que o autor expressa através da sua derradeira obra: por um lado, o eminente definhamento da cultura europeia e, por outro, o do próprio escritor Stefan Zweig.
De ascendência judaica, desde 1934 que o autor voluntariamente se exilara da Áustria, vivendo em Inglaterra, Estados Unidos da América e Brasil, este último o país onde pôs termo à vida deixando uma mensagem inequívoca de resistência na aparente desistência do acto: “Depois dos meus sessenta anos seriam necessárias forças especiais para começar novamente tudo de novo. E as que possuo estão esgotadas através destas longas errâncias sem destino pátrio. Assim, considero melhor, em boa hora e de forma íntegra, terminar uma vida à qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal, o mais precioso bem desta Terra“.
Em “Novela de xadrez” entramos num grande navio a vapor, numa viagem entre Nova Iorque e Buenos Aires. À descrição do reboliço do embarque segue-se a apresentação de Mirko Czentovic, campeão do mundo de xadrez, vedeta nos circuitos restritos como nos jornais do momento. Alguém que começou por ser “um rapaz campesino, bronco e taciturno, de quem nem o mais sagaz dos jornalistas conseguira arrancar uma palavra útil que fosse para fins publicitários. (…) Desde a sua vitória no torneio mundial considerava-se o homem mais importante do mundo“. O nosso narrador, ilustre anónimo que se apercebera da presença de personagem tão importante entre os passageiros do navio, não descansa enquanto não o consegue atrair para uma partida.
“Para o xadrez, tal como para o amor, é imprescindível a existência dum parceiro“. Eis que naquele navio surge inopinadamente um misterioso jogador que, interferindo com uma partida em curso, parece adivinhar as jogadas do campeão, conseguindo enfrentar a sua arrogância e suscitar a curiosidade generalizada. Desenham-se então verdadeiros duelos de raciocínio e estratégia, entre um campeão arrogante e déspota e um sábio discreto e humilde.
Na apresentação das duas personagens centrais, Stefan Zweig fornece-nos ainda elementos históricos de compreensão sobre uma época – muito a sua época -, do início da segunda guerra mundial, das diversas formas de domínio e tortura de então. Dr. B, o jogador misterioso que, ao fim de mais de vinte anos sem jogar, afronta o jovem campeão do momento, fora um prisioneiro arrancado à normalidade, torturado com a solidão e forçado a afogar-se nos seus próprios pensamentos. Apropriando-se de um pequeno livro de xadrez, constrói infindáveis cenários de jogo, verdadeiras partidas contra si mesmo, sequências infindáveis de raciocínio puro até ao limite da sanidade e da sobrevivência.
No final ficam registos de uma novela com uma mensagem eminentemente filosófica, com destaque para os limites da sanidade e a sua relação com a sobrevivência, a integridade do juízo individual e os limites do desafio, o valor do livro, do jogo, do alimento intelectual que ambos comportam, diletantes ou sábios.
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