“Este é simultaneamente um romance histórico e uma história escrita sob o formato de um romance” – assim explica a narradora de “Noites de Peste” (Editorial Presença, 2023), uma historiadora empenhada em reconstituir, 116 anos depois, “os seis meses mais agitados e decisivos na vida da ilha de Mingheria, pérola do Mar Mediterrâneo Oriental”.
Esta ilha encantadora, famosa pelos mármores e pelas rosas, é um prodígio da imaginação do nobelizado Orhan Pamuk – o autor turco por trás da narradora –, que a caracteriza com grande riqueza de detalhes, atribuindo-lhe cores e cheiros, vida social e comércio, um clima e uma língua própria, um passado que a insere na História do mundo, e um conjunto de tensões políticas, étnicas e religiosas que a ligam às convulsões dos tempos.
Quando a acção começa, em 1901, Mingheria é o 29º Estado de um império otomano decadente, em fase de perda de territórios, e vê o seu quotidiano agitado pela chegada de um navio a vapor que transporta uma delegação numa missão especial à China. A delegação inclui uma sobrinha do sultão, a princesa Pakize, bem como o seu esposo, o Dr. Nuri, um médico famoso. O percurso deste casal cruza-se com o de Stanislaw Bonkowski, um homem de 60 anos, de ascendência polaca, que desempenha as funções de químico real do sultão, percorrendo o império em seu nome para supervisionar medidas de saúde pública. Acompanhado pelo seu assistente, Bonkowski desembarca com o propósito secreto de investigar as alegações politicamente explosivas da expansão de uma estirpe de peste que já matou milhares na China e na Índia, mas acaba violentamente assassinado.
O enredo desenvolvido em torno da peste evoca a nossa experiência colectiva recente com a epidemia de covid-19. A par do medo, há negacionismos e superstições, gente que encara as regras de quarentena como “restrições modernas”, e até mesmo alguém que afirma que “aceitar a quarentena é aceitar a ocidentalização”. Infelizmente, a narrativa estagna entre peripécias ligadas às tentativas de controlo do surto e uma miríade de pormenores, recuperando o fôlego quando um jovem militar da escolta da princesa, o major Kâmil, proclama a independência de Mingheria, num contexto em que a população se sente abandonada pelo resto do mundo e prisioneira na sua própria ilha.
Aquilo que poderia ser uma boa intriga policial em torno do homicídio de Bonkowski não se desenvolve: o leitor não acompanha a investigação realizada e a revelação dos resultados desta não é totalmente satisfatória. Por oposição, é interessante a forma como o major Kâmil e o amor romântico que ele viveu na ilha são mitificados no processo de construção de uma nação. Aliás, é irresistível tentar identificar as razões pelas quais este livro levou a que o autor fosse acusado de insultar a memória do fundador da república turca. Apesar das escolhas narrativas questionáveis, num livro com mais de 600 páginas impressas em letra relativamente pequena e que arrisca várias vezes tornar-se fastidioso, é inegável que Pamuk é um excelente analista dos conflitos persistentes entre modernidade e tradição, bem como entre Oriente e Ocidente.
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