“O mundo era um vagão de gado hermeticamente fechado.“
Por muitos livros que se leia sobre o Holocausto, há sempre a certeza de ainda não termos visto tudo, de não termos compreendido a verdadeira dimensão e incidência da barbaridade e da insanável ferida deixada na humanidade. “Noite”, de Elie Wisel (Dom Quixote, 2023), é um testemunho na primeira pessoa dos horrores inimagináveis passados durante a II Guerra Mundial, relembrando o autor a forma como lhe saquearam a infância, a família e a vida.
Em 1944, com 14 anos, Wiesel foi levado para os campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald, separado da sua mãe e das suas três irmãs e assistindo à morte lenta do seu pai, tornando-se testemunha de todo aquele horror, com um sentimento de impotência perante a morte da sua inocência e da sua fé. O autor relata, ao longo do livro, os seus sentimentos nesse período, fazendo uma descrição pormenorizada das situações pelas quais ele e muitos outros judeus passaram. Foi libertado pelas forças aliadas em 1945, não pensando de imediato na revolta que sentia – antes na fome que o atormentava. “Eu dava um passo à frente de outro, maquinalmente. Arrastava um corpo esquelético que mesmo assim pesava tanto. Se me tivesse visto livre dele! Apesar dos meus esforços para não pensar, sentia que era dois: o meu corpo e eu. Odiava-o”.
Elie Wiesel nasceu em 1928 na cidade de Sighet, hoje parte da Roménia. À deportação e à sobrevivência dos campos de concentração e extermínio alemães, seguiu-se uma tremenda vontade de viver e de contribuir para a paz, começando por fazê-lo em Paris – onde estudou na Sorbonne e trabalhou como jornalista.
Em 1958 estreou-se com este “La Nuit”, um livro de memórias sobre as suas experiências nos campos de concentração. Seguiram-se dezenas de outras publicações, muitas das quais expondo a sua experiência de sobrevivência. Nas suas muitas palestras, Wiesel preocupou-se com a situação dos judeus e de outros grupos que sofreram perseguições e morte por causa da sua religião, raça ou nacionalidade. Em 1986 recebeu o Prémio Nobel da Paz, sendo reconhecido internacionalmente pela preservação da memória do Holocausto e por ter combatido o mal e a intolerância em todas as suas formas, com uma mensagem de paz, expiação e dignidade humana – “Wiesel é um mensageiro para a humanidade”, escreveu o comité Nobel.
Numa altura em que políticos, líderes e educadores parecem estar com dificuldade em dosear discursos e apelos à reacção, voltarmos à análise do Holocausto poderá ser uma oportunidade essencial para inspirar o pensamento crítico, a consciência social e o crescimento pessoal. Convirá desde logo lembrar que o Holocausto, um acontecimento determinante na história mundial, ocorreu no contexto de um conflito que ultrapassou limites geográficos, afectando todos os segmentos das sociedades. Décadas mais tarde, as sociedades continuam a debater-se com a persistência da xenofobia, de genocídios, da contínua crise dos refugiados e das ameaças a muitas das normas e dos valores democráticos.
À nossa volta, coexistem exemplos da forma como na derradeira luta pela sobrevivência se perdem os laços, como a selvajaria se revela, como a resistência se faz pela parte física – pela força psicológica de não desistir -, como o inimaginável da maldade continua a revelar-se no ser humano. “Noite” é por isso uma leitura obrigatória, hoje e sempre, como o é “Se Isto é um Homem”, de Primo Levi. Não interessa de que lado da barricada estejamos; interessa que acautelemos os limites da legitimação do que se sabe ou do que se julga saber, conscientes de que, até que alguém o revele, há sempre muito mais oculto do que aquilo que os sentidos têm capacidade de captar e a mente de equacionar. Há uma dimensão do mal e da barbárie que só se julga possível quando se houve o relato na primeira pessoa.
2 Commentários
Como sempre, uma excelente analise por Francisca Moura. Parabéns
Fantástica descrição e análise. Gosto muito do tema do holocausto. Nunca é demais ler sobre este assunto!