Noa vive numa ilha, mas não quer ver o mar desde que um acidente de pesca lhe levou os pais. Apesar de ainda ter o avô Lineu, que partilha a sua dor e com quem vai morar, o desaparecimento daqueles que prometeram estar sempre com ela é sentido como um abandono. Além disso, o facto de quase tudo à sua volta continuar igual, como se esta enorme tragédia pessoal nada fosse, magoa-a profundamente, pelo que Noa deixa de falar, fechando-se a um mundo que não reflecte o seu sofrimento.
Este é o ponto de partida de “Noa” (Oficina do Livro, 2020), um belíssimo livro para todas as idades, com texto de Susana Cardoso Ferreira e ilustrações de Raquel Costa, que aborda com extrema sensibilidade os temas da dor e da superação após a perda de algo que “era tanto que parecia tudo”.
Avô e neta recuperarão a alegria de viver, mas o processo não é fácil. De início, voltam-se para o interior, tanto de si próprios como do espaço que habitam. O jardim maravilhoso que lhes envolve a casa abrange o mundo, graças à variedade de árvores provenientes dos quatro cantos da Terra, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, os isola do exterior. Apesar das boas intenções de alguns adultos que acreditam nos benefícios da convivência infantil, Noa sente-se “desconfortável com os outros do seu tamanho”, cujas brincadeiras não a divertem. As crianças levadas a visitá-la também têm outro ritmo e pouco interesse em “conversar só com os olhos”. Por oposição, o corvo que um dia aparece no jardim e começa a levar-lhe “presentes” torna-se um amigo que respeita o seu silêncio, não faz perguntas nem sente pena, animando-a sem precisar de se esforçar.
Outro elemento que se junta à família é a professora Henriqueta Pia, a quem a surdez roubou a profissão e o mar engoliu a casa. Sendo uma velha amiga do avô Lineu, consegue que este lhe arrende um quarto e a sua presença é essencial para que Noa, incapaz de se adaptar ao primeiro ano do ensino básico numa escola onde nada cheira a casa, possa aceder ao regime de Ensino Doméstico.
Com as férias escolares, surge Paz, uma neta “emprestada” de Henriqueta, tão tagarela que não se importa com o silêncio de Noa, porque fala pelas duas. Porém, a extrovertida Paz também sofre, à sua maneira, por se sentir abandonada pelos pais. O silêncio de Noa perante os seus desabafos provoca uma zanga que quase acaba mal, mas é precisamente o risco de uma nova tragédia que leva Noa a quebrar o seu silêncio. Trata-se do primeiro passo para se reconciliar com o mar.
Toda esta história é contada numa linguagem cristalina e encantatória. A própria estrutura do livro articula de maneira excelente a organização do texto com ilustrações de grande qualidade, compondo um tocante manifesto sobre a capacidade de encontrarmos beleza e alegria nas coisas que permanecem após uma perda irreversível.
1 Commentário
Noah será um sucesso como tudo o que Susana escreve. Isabel Dantas resumiu as emoções que nos esperam nas páginas que leremos.