Jenny Kramer é uma jovem adolescente que, aos quinze anos, vê a sua vida marcada por um episódio profundamente traumático: uma violação. Os médicos decidem administrar-lhe um fármaco que a pouparia ao stress pós-traumático, fazendo desaparecer as memórias do incidente.
Era uma jovem bem-sucedida, que se considerava sortuda pela beleza que lhe era conhecida, ainda que a timidez e alguma insegurança subsistissem. Ao ver-se violentada daquela forma, e embora não se recordasse do que se tinha passado – quem era ele, como tinha chegado até si, como fora possível manietá-la durante tanto tempo -, Jenny interrogava-se porque não tinha conseguido travá-lo. Não reviver o episódio poupava-a às emoções dolorosas, mas alimentava uma interminável dúvida relativamente ao que verdadeiramente teria acontecido num crescendo de especulações e possibilidades. Não conseguia lembrar-se até que ponto havia consentido, até onde havia ido a sua resistência ou desistência. Esquecer não parecia ser melhor que lembrar.
Tom e Charlotte Kramer, os pais, viram as suas vidas num turbilhão de emoções. O fracasso de não terem conseguido proteger a sua menina transformou-se em desespero, manifestado de formas muito diferentes, acentuando a clivagem que já viviam enquanto casal. À culpa seguiu-se a obsessão pela descoberta da verdade, fosse lá isso o que fosse.
A pretexto da forma como cada personagem lida com o drama de Jenny Kramer somos orientados para uma questão de fundo e uma evidência implícita: será que alguém, alguma vez, revelou o seu eu a outro? Desenganemo-nos. Há uma parte de nós, mais factual ou mais emocional, que permanece oculta, seja por vergonha, cobardia ou medo. Mentiras inofensivas, mentiras graves, todos os dias, de forma ostensiva ou piedosa.
Para além da narrativa e exploração do episódio traumático, “Nem Tudo Será Esquecido“, (Editorial Presença, 2017), o terceiro livro de Wendy Walker, uma advogada de Connecticut, revela-se uma incursão pelo território das memórias factuais e emocionais decorrentes de trauma.
Existem hoje experiências exploratórias e muito controversas de alteração de memórias factuais, mitigando o seu impacto emocional através de medicamentos e terapias. É preciso considerar tudo o que está envolvido no processo de armazenamento das memórias, a sua localização e a forma como as recuperamos. Este é o apelo e a luta do psiquiatra Alan Forrester, que defende uma forma diferente de lidar com a perturbação de stress pós-traumático, rejeitando o ganho imediato da amnésia anterógrada medicamentosamente induzida. Acaba por se ver envolvido em toda a trama, não só por acompanhar em consultório várias das personagens, como pela inesperada proximidade familiar que a experiência vivida por Jenny Kramer acaba por revelar relativamente a si.
Pelo entremeio colhemos ganhos da sua experiência como voluntário numa prisão de segurança máxima, na qual acompanha criminosos que cometeram crimes graves, muitos deles mentalmente doentes.
Estamos perante uma narrativa com múltiplos focos. O drama pessoal e familiar, a informação policial e a exploração terapêutica. A jovem vítima e protagonista às voltas com o seu drama e as soluções possíveis. As famílias que se confrontam e se debatem com (in)capacidades de protecção e sobrevivência. E são várias as famílias que surgem na narrativa, variando as perspectivas de necessidade e legitimidade, remetendo para a estratosfera as questões morais e éticas. Acresce ainda a ansiedade, a raiva e a depressão de Sean Logan, um ex-militar e único sobrevivente de uma fatídica missão em território de guerra.
“Nem Tudo Será Esquecido” é mais do que uma belíssima leitura de suspense. É um pretexto para a reflexão em torno do que fazer com as cicatrizes emocionais que todos vamos granjeando, da aceitação da imperfeição.
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