• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Nada, Deus Me Livro, Bertrand, Janne Teller
Mil Folhas 0

“Nada” | Janne Teller

Por Cris Rodrigues · Em 09/11/2017

“De trás de mim, vinha um som cavo de cada vez que uma das pás batia no solo, seguido de um rumorejo seco quando a terra deslizava na pá. Som cavo, rumorejo, som cavo, rumorejo. (…) Depois ouviu-se um estalo quando os rapazes chegaram ao caixão, e a escavação progrediu devagar. (…) A imagem fez-me sentir um arrepio na espinha. Estremeci e tentei não pensar mais no assunto. Virei o olhar para os abetos e pus-me a contá-los.”

Não sei se conseguiremos virar muita vez a cara para o lado e esquecer o que se vai lendo no romance “Nada” (Bertrand, 2017), de Janne Teller, que chegou a estar proibido na Dinamarca. Um livro que roça o bizarro, alimentando uma dose de crueldade camuflada pela inocência da meia dúzia de jovens que compõem o enredo.

Conduzidos pela premissa de Pierre Anthon, que acha que nada vale a pena e portanto escusam de se prestar a grandes esforços, os colegas de turma embarcam numa missão de atribuir sentido a um totem composto por eles mesmos com uma série de objectos, mais ou menos importantes para cada criança. E é aí que a luta começa e a bizarria se instala. Como dar significado a um amontoado de “coisas” a que apenas eles assistem à sua evolução e significância?

“O pobre hamster soltou guinchos lancinantes e encolheu-se todo na outra extremidade da gaiola, e Gerda chorou e pediu para embrulharem a cobra em jornal para não termos de a ver. Mas os guinchos do Oscarzinho só aumentaram o significado da cobra em formol e ninguém concordou em tapar o frasco.”

À medida que o romance avança, cresce uma procura pelo significado das acções do grupo de jovens, nas quais se vai percebendo um descontrolo cada vez maior, adivinhando-se um desfecho drástico. No entanto, a forma como a autora encontrou para narrar esta história é despudorada e simples, quase como se quisesse transmitir que é quase nada, mas o suficiente para revelar o terror e maldade associada à procura do sentido da vida, intrínseco ao ser humano. Claro que isso não resume o existencialismo que “Nada” encerra em si, pois facilmente compreendemos que toda a sua construção, que cavalga no absurdo e no chocante, foi deliberadamente feita para chocar e espicaçar o leitor, que se vai revoltando e questionando.

“As consequências do comportamento de Cinderela eram incalculáveis. Nunca poderíamos devolver à igreja uma imagem de Jesus coberta de urina. Por fim, um a um, começámos todos a rir. Havia alguma coisa de cómico naquela situação, a imagem sagrada e a urina amarelada de Cinderela a escorrer pelos cotos das pernas partidas e a pingar na serradura. E de qualquer forma, com as pernas partidas, Jesus também já não estava em muito boas condições.”

Nada, Deus Me Livro, Bertrand, Janne TellerAs convenções são todas abandonadas, tudo perde significado na procura de um outro significado maior. A monstruosidade com que a sequência de eventos ocorre questiona muito os valores que se têm vindo a perder – e isto sem moralismos, mas fazendo, essencialmente, o leitor pensar no peso da educação e na forma como as crianças olham ao seu redor e que significados tiram do que vêem e que motivações as movem. O foco da acção estar num grupo de adolescente foi uma arma muito bem escolhida por Teller para lançar um alerta e um pedido de atenção (só pode).

A forma perversa como alguns dos jovens são retratados e o perfil psicológico que se lhes adivinha, por actos vingativos, confere ao livro contornos de thriller. Estamos perante aquilo que parecem ser crimes menores, até que percebemos que nada é, para eles, insubstituível – ou tudo é passível de ser conquistado, até pelos métodos menos ortodoxos.
“Contudo, pior ainda foi semear em mim a desagradável suspeita de que Pierre Anthon tinha percebido uma coisa: que o significado era relativo e, portanto, não significava nada.

(…) Estava-se bem no universo da fama e na crença no significado, e eu não queria sair de lá, porque fora dele havia apenas o lado de fora e nada.”

Fica a estranha sensação de termos, em mãos, uma metáfora para um grito mudo que muitos jovens dão quando buscam identificação, sentimento de pertença e respeito, num mundo recheado de informações contraditórias, muitas delas fúteis e sem terem uma rede familiar de suporte que os esclareça e acompanhe, formando-os mas, também, crescendo com eles.

BertrandDeus Me LivroJanne Teller

Cris Rodrigues

Pode Gostar de

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors, Mil Folhas

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista, Mil Folhas

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular, Mil Folhas

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • O Céu da Língua, Gregorio Duvivier, Deus Me Livro, H2N Culture Connectors,

    Gregorio Duvivier volta a mostrar-nos O Céu da Língua

    08/05/2025
  • 5L, 5L 2025, Deus Me Livro, Edite Guimarães, Entrevista,

    Entrevista: Edite Guimarães apresenta-nos o 5L

    08/05/2025
  • O Som da Mentira, Amy Tintera, Deus Me Livro, Crítica, Singular,

    “O Som da Mentira” | Amy Tintera

    07/05/2025
  • Dentro da Tenda, Lucie Lučanská, Deus Me Livro, Crítica, Planeta Tangerina,

    “Dentro da Tenda” | Lucie Lučanská

    07/05/2025
  • Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria, Mariana Enriquez, Deus Me Livro, Crítica, Quetzal,

    “Um Lugar Luminoso Para Gente Sombria” | Mariana Enriquez

    30/04/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto