Em 1971, analfabeta, com onze anos de idade e um corpo delgado, Maria do Carmo parte da aldeia montanhosa onde nasceu, perto da Sertã, levando “nada mais que a bolsa de palha com uma muda de roupa”, para servir uma família rica em Lisboa. Espera-a um quotidiano opressivo, um quartinho sem janelas, uma alimentação à base de sobras e uma instrução à base de bofetadas de uma patroa desconfiada e pouco paciente, que espera vê-la servil e grata. Desde então, por mais que mude de casa e de patrões, Carmo viverá “Na Terra dos Outros” (Companhia das Letras, 2024), sentindo-se como uma exilada num mundo hostil.
Ao longo de décadas da vida de Carmo, desenrolam-se acontecimentos marcantes da história de Portugal, aos quais ela prestará pouca atenção. Numa iniciativa arriscada, consegue trocar os primeiros patrões por outros, política e socialmente progressistas, que a incentivam a estudar, mas um episódio traumático impele-a para uma nova mudança. Quando a reencontramos, após um salto temporal de 15 anos, já casou e passou de criada interna a mulher-a-dias, mas o lar proporciona-lhe pouca felicidade: os dois filhos, arrogantes e impacientes, tendem a reproduzir os modos desrespeitosos do pai, e todos consideram natural que ela se ocupe das tarefas domésticas, pelo que Carmo recebe mais exigências, desdém e recriminações do que agradecimentos. Adicionalmente, a experiência de emigração em Roterdão não corresponde às expectativas e contribui para separar no espaço uma família já desunida.
Por seu lado, a família original de Carmo revela-se tão disfuncional quanto a constituída. O pai, há muito emigrado em França, jamais será visto. A mãe nunca lhe perdoará a ruptura com os primeiros patrões – a quem até agradeceu por lhe levarem a filha em condições de semi-escravidão – e exprimirá rancores antigos a cada oportunidade, tratando-a com “modos frios e distantes, muito distintos daqueles com que tratava os filhos que tinham ficado sempre por perto”. O irmão mais velho chegará a chamar-lhe “egoísta”, apesar do envio contínuo aos parentes da aldeia do pouco dinheiro por ela poupado. Carmo ressente-se da falta de reconhecimento dos seus sacrifícios, mas possui tão pouca auto-estima – e tanta dificuldade em expor o mal-estar que a aflige – que reage às desilusões culpabilizando-se pelas poucas decisões que toma.
Este é o primeiro romance de Manuel Abrantes, investigador no campo da sociologia do trabalho e das desigualdades, que nos apresenta um retrato empático e realista da existência de alguém educado para servir – tanto patrões quanto marido e filhos –, realizando um trabalho frequentemente dado por garantido e por isso desvalorizado. Nota-se um cuidado extremo no desenvolvimento da psique da protagonista, na articulação das situações e na caracterização de todas as personagens secundarias. Na última parte, após uma luta inglória para resistir às adversidades de cada dia, quando o quotidiano de Carmo se torna mais solitário do que nunca, a sua realidade começa a mudar, graças a alguns reencontros, permitindo que a narrativa termine com um vislumbre de esperança num futuro melhor. O livro termina, mas a história de Carmo não.
1 Commentário
Excelente avaliação crítica do romance que eu próprio também apreciei muito. Uma vida com poucas alegrias, como será a de tantos de nós.