“Esquecer para decidir. A toada de Rousinol ter-me-ia dado jeito nos últimos anos. A mim, ao mundo, às relações institucionais entre Estados que se movem em guerras de Caim e Abel para se aliarem na iminência de um inimigo comum, […] até a Deus, que testa a santidade nos rosários de pecados a que empresta os ouvidos. Não estaria Deus melhor se pudesse esquecer em vez de perdoar?”
Não será o esquecimento a melhor arma para os males da humanidade, a forma de evitar ou atenuar decisões fatais que marcaram os acontecimentos das gerações passadas? Esquecer é o instrumento mais poderoso e eficaz para tomar decisões ao longo da vida: esta é a tese defendida pelo matemático galego Jorge Rousinol. A memória, tida como um dos elementos mais diferenciadores de seres humanos e animais, condiciona a evolução. Mas, numa fase avançada da sua vida, toma uma decisão que vai contra a teoria defendida ao longo da sua existência: encomenda uma biografia a uma editora. Quer deixar a sua vida escrita e relembrar as pequenas glórias e descobertas. O que leva este homem a violar o seu legado?
“Na Memória dos Rouxinóis” (Quetzal, 2018), o quarto romance de Filipa Martins, é, em traços gerais, um livro sobre a memória: entrelaça várias personagens de diferentes gerações para dar a conhecer o que leva um homem, no final da sua vida, a ir contra a teoria matemática que defendeu afincadamente. O biógrafo de nome Nino, que tem nas suas mãos a responsabilidade de contar o legado de Rousinol, o seu companheiro Camilo, sobrinho do matemático galego, Silvana, a encarregada de passar o trabalho encomendado ao biógrafo e os outros elementos da sua família, compõem a narrativa. A certa altura, os pedaços de memória que retratam o passado de Rousinol equivalem à escrita, em tempo real, da biografia encomendada. E esta é uma das grandes belezas do livro.
Só o encadeamento brilhante das diferentes narrativas revela o talento desta escritora, já que em nenhum momento o leitor cai na mais simples confusão. Qualquer uma das personagens colocadas na obra é merecedora de atenção e admiração, mas não há como negar: a relação entre Camilo e o biógrafo é, sem sombra de dúvida, o que há de mais interessante nesta Memórias dos Rouxinóis. O que fica no lugar do amor quando a relação entre duas pessoas é alimentada, ao longo de anos, pela mágoa?
“A solidão dos casados é difícil de explicar. Os que estão sozinhos veem uma folha velha num ramo nu e apontam – ali está a solidão. Para eles, a solidão é vazio e ausência, a única emoção que conseguem partilhar. É da sua condição desaparecer do outro, garantem.”
A escrita da biografia de Rousinol – tio de Camilo – é a alavanca para as questões que surgem a cada elemento deste casal. Escrever sobre um “sacana”, tal como Camilo chama ao próprio tio, é só o despoletar de os ressentimentos guardados virem ao de cima. Relembrar é, de certa forma, ter todo o conhecimento na palma da mão. E Nino tem nas suas mãos a memória do matemático Rousinol, à medida que vai explorando as facetas da sua relação com Camilo.
Mais do que uma boa exploração das personagens, as questões históricas e matemáticas estão também em destaque, numa mistura de enredos e tempos que dão riqueza ao enredo de “Na Memória dos Rouxinóis”, fazendo desta uma das melhores obras portuguesas dos últimos tempos, sobre as duas facetas da memória: entre os benefícios de ter acesso ao passado, a partir de momento é que isso se torna um pesadelo?
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Filipa Martins apresenta “Na Memória dos Rouxinóis” no dia 7 de Março (quarta-feira), às 21h00, na Livraria Ler Devagar, em Lisboa. O livro será apresentado por Afonso Cruz e Luísa Lopes, com leituras de Raquel Marinho e Teresa Tavares.
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