O título não engana ninguém: “Música, Só Música” (Casa das Letras, 2022) é um livro que reúne seis entrevistas do escritor japonês Haruki Murakami ao seu conterrâneo Seiji Ozawa, maestro de renome mundial. O tema é – adivinharam – a música, e a relação íntima que ambos têm com ela, sobretudo com a música clássica.
Murakami é, desde sempre, um ávido melómano, proprietário de uma impressionante colecção de mais de 10.000 discos. Aos 20 anos, quando os pais queriam que ele fosse trabalhar para a Mitsubishi, preferiu casar-se e comprar com a mulher um bar de jazz, o Peter Cat. Escreveu grande parte do primeiro livro, “Ouve a Canção do Vento”, à mesa da cozinha do bar, onde muitas vezes ficava a trabalhar após o fecho. Nas suas ficções, elaboradas misturas entre o realismo dramático e um imaginário delirante e misterioso, figuram melodiosas descrições musicais, abraçando diferentes estilos como o jazz, o rock e a música clássica.
Desengane-se quem venha parar a este livro à procura do universo onírico habitual em Murakami: a obra apela sobretudo aos aficcionados de música clássica. É impossível ler as conversas sem ir à procura das músicas (obrigado, spotify!) — é um livro que tem de ser lido e ouvido ao mesmo tempo. Os protagonistas discorrem longamente sobre questões técnicas muito específicas, como a diferença de colorido sonoro entre duas interpretações, a respiração dos trompistas ou a vibração do fagote.
Não é fã de música clássica? Ainda assim, pode encontrar por aqui alguns motivos de interesse: desde logo, surgem comparações curiosas entre o ofício de músico e o de escritor. No capítulo chamado “a relação entre a escrita e a música”, por exemplo, o autor de culto afirma que aprendeu a escrever ouvindo música: “O que é que conta mais na escrita? O ritmo. Se um texto não tiver ritmo, ninguém o lerá. O ritmo nasce da combinação das palavras, das frases e dos parágrafos, mediante a alternância entre a doçura e a dureza, a ligeireza e a intensidade, o equilíbrio e o desequilíbrio, através da pontuação e do uso de diversos tons”.
Destas conversas emerge a paixão profunda que ambos nutrem pela música clássica. A dinâmica entre os dois permite observar duas perspectivas distintas: a do ouvinte e a do executante. Murakami assume-se como um diletante, um leigo no que diz respeito aos aspectos técnicos. Quanto a Ozawa, nota-se que no centro do mundo do maestro está a música, e não a palavra. Por vezes, parece que está a verbalizar pela primeira vez muitas das ligações intuitivas que definem a sua carreira de músico.
Ambos os protagonistas possuem uma vasta cultura musical, que vai de Brahms a Mahler, de Mozart a Beethoven, de Glenn Gould a Mitsuko Uchida. Quem quiser perceber melhor os mecanismos e rodas dentadas que movem a música clássica, tem aqui uma bela porta de entrada.
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