Em “Morro da Pena Ventosa” (Porto Editora, 2024), Rui Couceiro tricota pensamentos e produz uma ode ao Porto, especialmente à zona ribeirinha, às suas gentes e à sua história. Deixa igualmente um alerta quanto ao futuro, mostrando como os residentes sentem que lhes estão a atacar o futuro.
Poderá a memória ser um lugar de confiança? Não estando certa disso, a protagonista narradora opta por uma despedida progressiva da avó recém-falecida, decidindo que durante um ano manterá um diário, alimentado por recordações do passado, emoções do presente e sonhos quanto ao futuro. Isto porque a partida da avó, para além do seu desaparecimento físico, deixara-a sem âncora e sem bússola, uma vez que fora ela quem a criara após o desaparecimento da mãe, quem despertara a sua paixão pela cidade e a levara a descobri-la para além do evidente, transformando-a no seu alimento. “O meu Porto é feito de duas cidades: aquela em que cresci e a de hoje. Uma deu-me o que tenho, fez de mim o que sou, a outra dá-me o pão”.
Pelo entremeio do relato da protagonista, uma jovem mulher nascida e criada na zona ribeirinha – que transformou as dificuldades e a dureza da sua vida e da zona num retrato pitoresco, sobrevivendo como guia turística -, acompanha-se o testemunho de uma geração tantas vezes desprovida de esperança e de solidariedade. Gentes que viram o mundo ignorar as suas necessidades e constataram que a indiferença fere mais que a afronta. Gente que sonhou os sonhos que julgou serem os dos outros quando os seus se revelavam vazios de esperança e, por isso, achou que um dia alguém se haveria de se aperceber da sua existência.
Para além do relato socialmente impactante, pelas figuras e episódios que caricatura ou ironiza, Rui Couceiro toca de forma hábil as estratégias internas de gestão do trauma. A base do relato é a relação de Elisabete (Beta) com uma amiga que, na realidade, era muito mais que tal: a irmã que não tivera ou a pessoa que gostaria de ser, uma criação sua, alimentada pela escrita diária que lhe permitia distanciar-se da realidade onde nem sempre se encaixava. Para tanto escreveu um diário, iniciado na segunda classe e mantido até ao sétimo ano, altura em que, já se pressentindo mulher, achava que nada alimentaria a sua imaginação. Voltou a escrevê-lo já adulta, num momento em que voltava a sentir que o mundo à sua volta se desmoronava, usando-o como tábua de salvação da sua história e da memória de afectos.
No texto de Rui Couceiro, o realismo dos relatos é tal que parecem saídos de um livro de crónicas (por vezes) humorísticas, mesmo quando o conteúdo é dramático e pungente, como o era a violência doméstica banalizada, a presença consentida de abusos sexuais de jovens, a vida num bairro ainda sem infra-estruturas e a descoberta de pequenas comodidades, como o banho de chuveiro, o imperialismo do álcool na vida de muitos dos que não conseguiam mais do que afogar mágoas e as frustrações, a homossexualidade escondida e ainda ridicularizada, o impacto do Futebol Clube do Porto (FCP) na vida dos moradores, as questões climáticas e a escassez da água.
Ao leitor, fica a convicção de estar a realizar uma visita guiada pela história da narradora, mas fundamentalmente pela história da cidade, num registo enriquecido pela vida de quem lá efectivamente viveu. Ainda para além da história dos personagens envolvidos, e a pretexto desta, são tratados temas actuais e prementes, tais como os efeitos nefastos do turismo de massas e a especulação imobiliária, que ao dar primazia a quem vem por uns dias despreza quem toda a vida esteve na cidade.
A ode de Rui Couceiro ao Porto tem como lugar privilegiado a rua da Pena Ventosa, uma das mais antigas da cidade, relativamente à qual fica a dever-se uma visita pelos olhos do autor e da sua personagem.
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