O discurso é o de um narrador desprovido de filtros, em visita aos preâmbulos da sua vida literária, do que o alimentou, do que o inspirou, na literatura como na minudência quotidiana.
Períodos de indigência, períodos de apropriação sôfrega da obra de mestres, confronto com a realidade e desconstrução pessoal, são fases do processo de criação que este livro de Henrique Vila-Matas expõe como se tratasse de uma enciclopédia pessoal.
Em “Montevideu” (D. Quixote, 2023), o autor está constantemente a falar de literatura e de outros escritores, descrevendo a busca de estilo e a relação entre os mesmos. Um livro que permite abrir outros, como se fossem portas que permitem explorar os limites da literatura, que revela a necessidade do escritor se desligar do passado que o pode bloquear e o leitor do futuro que o pode condicionar na verdadeira aceitação do que lê.
Nesta viagem interior, temporal e onírica, Vila-Matas serve-se da geografia e de viagens que fez a Paris, Cascais, Montevideu, Reiquiavique e Bogotá para compor um cardápio de reflexões e de aventuras, buscas interiores que relata com despudor. Desengane-se quem esperar banais e clássicas crónicas de aventura de um escritor, para encontrar fragmentos de um viajante experiente e destemido, sem carapaças e sem esconder as bordoadas que a existência lhe tem conferido.
Um livro sobre a ambiguidade do mundo, sobre os mistérios e ansiedades da criação literária, revelando o narrador muito da sua geografia sentimental, dos seus afectos. O narrador e protagonista é um escritor às voltas com maldições, fantasmas e enigmas, muitos dos quais relacionados com o bloqueio criativo. Para tanto serve-se de diálogos com gigantes como Julio Cortázar, Juan Eduardo Cirlot, Tabucchi, Sterne, Bolaño, entre outros, conversas que sustentam a reflexão em torno do que é a literatura, por que se escreve e o que pode funcionar como desbloqueador.
Vila-Matas realça como a leitura é uma experiência única e pessoal, deixando-nos ávidos de penetrar no mistério da descoberta e da interpretação da realidade. No final, fica o convite ao leitor para que abra também ele sucessivas portas e seja parte dessa aventura de descoberta, encontrando em “Montevideu” narrativa, ensaio e critica literária.
Enrique Vila-Matas (Barcelona, 1948) é um dos mais consagrados escritores espanhóis da actualidade, traduzido em 36 línguas. Cavaleiro da Legião de Honra francesa, recebeu os mais importantes prémios literários. “Montevideu”, a sua obra mais recente, foi em 2022 considerado livro do ano pelo El Mundo.
Consensualmente considerado um exímio contador de histórias, transformando autores e lugares, literaturas e geografias numa paisagem pessoal, conduz como poucos o leitor por percursos nunca lineares, com as mais improváveis derivações por geografias e literaturas.
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