Para aqueles que, antes de mergulharem da prancha dos dez metros no mundo sonhos, gostam de ouvir uma história contada ao ouvido em voz alta, há um nome que certamente lhes assentaria que nem uma luva: Neil Gaiman, um autor britânico que, curiosamente, nos ofereceu já a épica série de banda desenhada Sandman, que, traduzida de forma livre, acabou por ser servida em português como Mestre dos Sonhos.
“O meu primeiro encontro com Asgard e com os seus habitantes foi quando era criança – não teria mais de sete anos – e li as aventuras do Poderoso Thor, ilustradas pelo artista de banda desenhada Jack Kirby, nas histórias com enredo de Kirby e Stan Lee e diálogos do irmão de Stan Lee, Larry Lieber. O Thor de Kirby era forte e belo, o seu Asgard era uma cidade com edifícios altos, imponentes e perigosos, saídas de um universo da ficção científica, sendo o seu Odin sábio e nobre e o seu Loki uma criatura sardónica de pura maldade, encimada por um capacete com chifres. Eu adorava o Thor louro de Kirby, sempre com o seu martelo na mão, e quis saber mais sobre ele.”
As palavras pertencem a Neil Gaiman, na introdução escrita para “Mitos Nórdicos” (Editorial Presença, 2017), onde o autor confirma que foi de facto em busca de mais informação sobre Thor e que, depois de deitar olhos a “Myths of the Norsemen”, de Roger Lancelyn Green, nunca mais os olhou para os quadradinhos da mesma forma: “Asgard, na sua narrativa, já não era a cidade futurista de Kirby, mas sim um grande palácio viking e um conjunto de edifícios em terras inóspitas e geladas; Odin, o pai de todos, já não era meigo, sábio e irascível, mas, sim, brilhante, incognoscível e perigoso; Thor era tão forte quanto o Poderoso Thor da banda desenhada, o seu martelo igualmente poderoso, mas ele era…bem, sinceramente, não era o mais esperto dos deuses; e Loki não era maldoso, embora seguramente não fosse uma força do bem. Loki era…complicado“.
No que toca aos mitos nórdicos, a verdade é que não chegaram até nós muito mais que fragmentos dos seus primórdios, pois o que foi publicado apenas ocorreu “quando a cristandade já tinha tirado o lugar à adoração dos deuses nórdicos“. Deuses que, diga-se, estavam longe de ser tudo menos bons rapazes, impondo a sua vontade num mundo criado a partir nada, fazendo uso de poderes obscuros e caminhando de queixo e martelo erguidos rumo ao Ragnarok, o equivalente bíblico do juízo final.
Para recriar as lendas nórdicas que tanto o entusiasmaram – afinal parece que prefere os deuses nórdicos aos gregos -, Gaiman decidiu recorrer a fontes com mais de 900 anos, mais concretamente a diferentes traduções do Edda em prosa, ao Edda poético e ao sempre útil A Dictionary of Northern Mythology, de Rudolf Simek.
O resultado são 15 lendas contadas com mestria, num estilo encantatório que tanto serve a miúdos com a graúdos, onde o leitor assiste ao início de tudo: quando os deuses criaram o mundo nas fendas entre o gelo e o fogo; à forma como Odin perdeu um olho e ficou a ver melhor do que antes; à invenção do hidromel para servir de combustível para os poetas; à épica viagem de Thor à terra dos gigantes; ou aos últimos dias de Loki, o mais ardiloso dos deuses. Uma vez mais, Neil Gaiman mostra-nos que é um exímio contador de histórias.
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