“Misericórdia” (Dom Quixote, 2022), o mais recente livro de Lídia Jorge, inicia com um confronto entre uma idosa e uma entidade completamente desprovida daquele sentimento: a morte é aqui um negrume que sai das profundezas da noite, umas vezes “disfarçada de vulto invisível”, outras assemelhando-se a um grifo, mas sempre cruel, desafiando a sua presa com perguntas, como a esfinge. A defesa contra tal poder encontra-se na palavra e no conhecimento que esta transporta. Outros combates se sucederão, até ao derradeiro, sobre o qual nada leremos, pois implicará o desaparecimento daquela que poderia narrá-lo. Sabemos desde o início que todo o texto corresponde ao diário do último ano da sua vida, passado numa “residência sénior” que “ocupa o edifício que antes foi o maior hotel de Valamares”.
A idosa chama-se Maria Alberta Nunes Amado, mas é mais conhecida como Dona Alberti, e os pensamentos que lhe ocorrem são, segundo as suas palavras, demasiado amplos para o vaso da sua cabeça e o volume do seu coração. Regista-os, por isso, em gravações áudio, ou em pequenos poemas manuscritos com cada vez mais dificuldade, para dar ordem a um quotidiano com características concentracionárias, num “lugar de esquecimento” onde a vida é diferente da “que se vive no mundo das pessoas livres”.
Todavia, Dona Alberti não é uma vítima indefesa da forma como a sociedade trata os mais velhos. Chegou de livre vontade a este “lugar de exílio”, ciente da degradação que o envelhecimento vai causando ao corpo, mas não se abstém de gestos de rebeldia, como quando se recusa a participar em actividades – supostamente lúdicas – que considera degradantes. Livre de maniqueísmos, o livro nunca se transforma num mero libelo contra as condições nos lares para a terceira idade. Há períodos complicados, em que a residência é comparada a um “navio problemático”, mas a jovem directora – que em tempos foi cuidadora – preocupa-se genuinamente com as pessoas a seu cargo, ainda que nem sempre lhes dispense a atenção desejável. A equipa de funcionários – provenientes de várias partes do mundo – inclui gente amarga, que manipula seres humanos como se fossem objectos, ignorando a sua voz, mas há quem saiba consolar, quem transmita energia, quem seja fiel, quem faça companhia. Também entre os residentes há uma diversidade de personalidades que reproduz o mundo exterior, com paixões e inimizades, preconceitos e crueldades.
Além disso, Dona Alberti não foi abandonada, mantendo o contacto com a família e continuando a receber visitas. Anseia, sobretudo, pela filha, embora algumas interacções com ela provoquem um desgosto profundo – os livros que a filha escreve não correspondem àquilo que a mãe gostaria que ela produzisse, e a disparidade entre as noções de sucesso de cada uma é fonte de desentendimentos.
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Apesar de tudo, persiste nesta protagonista fascinante uma reserva inesgotável de alegria, alimentada tanto por memórias como pela apreciação dos momentos em que se congratula por existir. Até a pandemia de covid-19, que chega pouco depois da felicidade de assistir aos fogos-de-artifício pelo ano novo, dá azo a novas descobertas: “de como as pessoas com muitos anos se juntam umas às outras, e se tornam amigas, sob a ameaça de existir uma entidade venenosa e invisível, que caminha pelo ar”.
Muito além de uma história sobre o envelhecimento, esta é uma obra portentosa acerca da condição humana, com tudo o que isso implica de encantamento pela vida e de fragilidade perante a doença e a morte.
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