“Desejo ser um creador de mythos, que é o mysterio mais alto que pode obter alguem da humanidade”. Escreveu-o Fernando Pessoa por volta de 1918 e, mesmo que a consagração tenha vindo com uma tardia e desconhecida posteridade, a verdade é que Pessoa se transformou num mito maior, criador de mistérios e de múltiplas personalidades que fazem dele, diga-se sem qualquer receio, o maior poeta cá do burgo.
Segundo Eduardo Lourenço, Pessoa ter-se-à instalado no coração do seu sonhado Quinto Império, “investindo no seu papel messiânico” da mesma forma que Camões o fez “no auge da sua glória”. Se, no poema “Ulysses” Pessoa define o mito como “o nada que é tudo”, já Jerónimo Pizarro, a quem coube a edição desta nova “Mensagem” (Tinta da China, 2020), oferece uma visão mais panorâmica e intemporal, envolvendo Pessoa nesse exercício imaginativo: “Um mito era Ulisses, o fundador mitológico de Lisboa; um mito eram os outros heróis, profetas e santos, como D. Sebastião, Bandarra e o Padre António Vieira; um mito era, ou poderia vir a ser, o próprio Pessoa, que, sendo nada, tinha em si todos os sonhos do mundo”.
“Mensagem”, livro-pátrio composto por 44 poemas, foi posto à venda a 1 de Dezembro de 1934, precisamente para coincidir com o dia da Restauração da Independência. Um livro que começou a ser desenhado bem atrás no tempo, tendo ficado em suspenso com a revolução republicana de 5 de Outubro de 1910. Pizarro mostra aqui as várias tentativas e desenhos de Pessoa para chegar a esta obra monumental, em esquemas que vão mudando sempre e com muitas hesitações. “Mas é importante perceber que Mensagem é um livro em que certas decisões se tomaram no decurso da composição final (como o título) e que partes dele – nomeadamente «Mar Portuguez» – podiam ter integrado outros livros”.
Na apresentação que desenhou para esta edição da Tinta da China, mais uma vez servida em capa dura e um belíssimo design dominado pela ilustração e o preto e branco, Pizarro revela muitas das inquietações que permanecem sobre “Mensagem”: “Portanto, não sendo impossível considerar Mensagem um poema único, impõe-se uma pergunta: ao considerá-lo assim, não outorgamos à obra uma unidade excessiva – essa mesma que Pessoa sonhou utópica e aristotelicamente para os seus livros todos? E não esquecemos uma certa mobilidade?”. Uma mobilidade real, onde um poema poderia conter em si a potência de fazer um livro, ou de ser descolado de um projecto para outro num espírito de viajante. Algo que faz como que esta Mensagem continue, segundo Pizarro, a ser “uma obra aberta, cuja génese e construção se poderá conhecer melhor se se descobrirem novos materiais” – hajam novas arcas para abrir.
Com vista a preencher a possível lacuna de a obra não revelar “os seus múltiplos sentidos de imediato”, incluem-se nesta edição uma série de “leituras do texto”: uma série de comentários, poema a poema, feita por António Cirurgião, autor de “O «Olhar Esfíngico» da Mensagem de Pessoa” (1990); um texto de Onésimo T. Almeida, que há mais de trinta anos estuda esta obra aberta de Fernando Pessoa; um texto da autoria de Helder Macedo, no qual estuda a genealogia literária de Mensagem; um texto de José Barreto, “o historiador que mais tem iluminado Pessoa na última década”, que lança luzes sobre a razão de Pessoa ter sido galardoado não na primeira mas na segunda categoria dos prémios do Secretariado de Propaganda Nacional.
Uma edição que, de acordo com Pizarro, “dá a conhecer testemunhos até agora desconhecidos de alguns poemas de Mensagem, sugere ligeiras alterações no cânone textual da obra e reúne textos, tanto em verso como em prosa, que contribuem para pensar e estudar o livro, sem esquecer a datação crítica de todos”.
Curiosamente, mesmo que se tratando de um livro-pátrio posto à venda em tempos de salazarismo, Pessoa ficou ausente da entrega dos prémios SPN, acabando por ser censurado e gradualmente marginalizado – isto porque a sua ideia de grandeza para Portugal não contemplava a figura de Salazar. Em tempos de revisitação histórica, estátuas derrubadas e cancelamentos em série, maravilhemo-nos de novo com o Nevoeiro Pessoano. É a Hora.
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguem sabe que coisa quer.
Ninguem conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ancia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a Hora!
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