“Meninas Sem Nome” (Asa, 2020), de Serena Burdick, arranca envolto em escuridão, lugar onde as irmãs, Luella e Effie, correm na floresta, ambas de coração acelerado. E nós, leitores, corremos com elas, e mais tarde com Mable, igualmente com o coração aos saltos, tais são as peripécias, a injustiça e a violência de alguns acontecimentos.
Num tempo imperfeito, aliás transversal a muitas épocas e que traz para a actualidade determinadas discrepâncias que teimam em se manter, “Meninas Sem Nome” expõe os reformatórios, disfarçados de lavandarias, que escravizaram raparigas em nome da recuperação da alma e dos ensinamentos para o mundo do trabalho. É nessa escravidão que surge, em plena Nova Iorque na viragem para o século XX, a House of Mercy, e é no chão do fosso desse edifício que nos deparamos com Effie, vencendo o medo, o abandono e uma doença cardíaca incurável.
“A morte avançava, rastejando, em pequenas e sedutoras oscilações (…). Eu queria a Luella (…), deixei de ter medo do escuro, dos fantasmas da minha imaginação, e tornei-me temente apenas do fluído que me enchia os pulmões e da sensação aterradora de que estava a afogar-me.”
Luella, a irmã mais velha, cheia de rebeldia, força e autenticidade, protege mas desencaminha Effie, a frágil irmã mais nova. Juntas percorrem o início deste romance, até à derradeira separação, fruto do medo e dos mal-entendidos que as famílias podem alimentar em prol de uma imagem para quem os rodeia, ignorando os verdadeiros laços.
“(…) Mãos essas agora cobertas de cicatrizes. «Um embaraço medonho» (…)
Eu adorava aquelas cicatrizes. Eram emblemas do heroísmo e prova da força e sobrevivência da mãe. Quando eu era pequena e ficava sem fôlego, a única coisa que me acalmada era passar os dedos pela pele vincada e retorcida das suas mãos. (…)
Afastei-me com uma tristeza imensa. Não sabia como reconfortar os meus pais. (…) não me importava de ter um buraco no coração. Eu via o mundo através daquele pequeno portal defeituoso. Era a fraqueza através da qual eu avivara as minhas forças. (…) Eu não ia morrer aos meus pais (…) não disse uma palavra à minha irmã (…). Ela nunca acreditou que eu estava a morrer.”
Luella é um “ponto de osso sólido e duradouro”, a ancoragem de Effie; no entanto, no decorrer desta narrativa surge Mable, essa sim um osso sólido e resiliente, uma personagem a quem somos incapazes de ficar indiferentes.
“Contei-lhe as imperfeições da minha mãe e os mistérios da família. Ela disse pouco, mas ouviu com um interesse silencioso. Saber que a história da família é feita de erros alivia os jovens. Faz com que se sintam menos imperfeitos.”
Todas estas meninas e mulheres estão presas numa espiral de tentativas de fuga, com o desejo de liberdade a arder nos membros, ou não estivesse em pano de fundo o movimento sufragista e as constantes manifestações em prol das condições laborais. Todas elas estão sozinhas, mas há uma energia de época que lhes eleva as expectativas e os objetivos. Fazendo-as acreditar que pode ser possível. Ainda assim, há uma fuga maior, à bagagem intemporal que é a família, onde a única saída possível é a da reconciliação e do perdão.
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