O escritor de policiais S. S. Van Dine jurava, a pés juntos, que “um romance policial não deve conter longas passagens descritivas, nem se deve deter em assuntos secundários, análises subtis de personagens, ou preocupações “atmosféricas”. Tais assuntos não têm lugar vital num registo de crime e dedução”.
Felizmente, nem todos os escritores seguem esta cartilha. “Melancholia” (Porto Editora, 2022), de Francisco José Viegas, é um policial que não se compagina com a fórmula redutora de saber quem é o culpado. É, definitivamente, um romance de outra cepa.
O livro apresenta, logo na primeira página, a desafortunada vítima: Cristina Pinho Ferraz, escritora de quarenta e nove anos, espécie de enfant terrible da literatura portuguesa, dona do desagradável hábito de expor nos seus livros um rol de segredos incómodos. Cristina, casada com um escritor medíocre (e sua secreta revisora), é alvo de um vasto e variado leque de rancores literários. Encontramo-la então ao volante na autoestrada de Viana, onde a testemunha última da sua existência, uma câmara instalada numa portagem, regista o seu derradeiro retrato em vida. Voltará a aparecer um ano depois, dividida em três sacos pretos: um para a cabeça, outro para os braços e o tronco, e um terceiro para as pernas e os pés – é sob as frondosas árvores do jardim do Palácio de Cristal, no Porto, que a polícia os desenterra.
Na página três damos de caras com o protagonista, bem conhecido dos leitores portugueses de policiais: trata-se do Inspector Jaime Ramos, entretanto retirado do activo — no decorrer do livro anterior, «A Luz de Pequim», o anti-herói foi afastado das investigações para ensinar as suas skills, como agora se diz, à nova geração de inspectores. Chamado para ajudar no inquérito, as investigações levá-lo-ão ao festival Correntes D’Escritas, na Póvoa de Varzim, onde se cruzará com uma amostra representativa do meio literário português e da sua fauna.
A acção do livro passa-se em pleno confinamento, e Ramos, que “já praticava o distanciamento antes disto”, estranha ainda assim as ruas vazias e o mundo preso entre paredes. Sobre este pano de fundo, Viegas conta uma história com raízes antigas, ancorada numa família ligada à herança judaica da cidade do Porto, gente com “muitos fantasmas, muitos passados”. Acompanhamos também as preocupações crescentes do velho inspector com a solidão, o envelhecimento, a morte, a “modernidade”, os demónios, os abismos e as correntes do tempo: “Anotem tudo. Escrevam tudo, porque a memória é um bem escasso, em perda permanente, e nós, além disso, raramente podemos estar atentos a tudo. A memória é o mais perigoso dos abismos.”.
O escritor também faz uso de longas enumerações, como quem pinta uma natureza-morta: “Assim cai uma lenda, assim fica apenas um espectro como roupa pendurada ao vento a meio da noite, velho, branco, casmurro, agressor típico, machista, vestido sempre da mesma maneira, carnívoro, desobediente, arrogante, incapaz de um gesto de solidariedade para com os mais jovens, cheio de segredinhos com o seu grupo de criaturas alarves e protegidas”. Viegas usa este dispositivo inúmeras vezes ao longo do livro, e a técnica contamina as páginas com poesia. Ao contrário de um policial de fórmula, os “assuntos secundários”, as “análises subtis” e as “preocupações atmosféricas” que Van Dine tanto abomina são, nesta obra, a carne sobre os ossos da estrutura policial.
“Melancholia” é um livro preso à geografia dos lugares, à geografia dos pensamentos, à geografia das emoções; são como três fios que se emaranham, sem se conseguirem destrinçar, urdidos com uma linguagem inventiva, erudita e de grande sensibilidade. É um livro para degustar com prazer e lentidão, sorvendo cada gota do curso das suas palavras.
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