• Mil Folhas
  • Música Com Cabeça
  • Cine ou Sopas
deusmelivro
Meio Sol Amarelo, D. Quixote, Deus Me Livro, Chimamanda Ngozi Adiche
Mil Folhas 0

“Meio Sol Amarelo” | Chimamanda Ngozi Adiche

Por Cris Rodrigues · Em 28/07/2017

“Eu sou nigeriano, porque o homem branco criou a Nigéria e me deu essa identidade. Sou negro, porque os brancos construíram o conceito de «negro» de modo a que fosse o mais distante possível do «branco». Mas antes de os brancos aqui chegarem já eu ira ibo.”

É entre ibos e haúças que entramos, desenfreadamente, por este “Meio Sol Amarelo” (D. Quixote, 2017 – reedição), e nos vamos deixando levar pela escrita escorreita de Chimamanda Ngozi Adiche, num livro ao qual não se podia pedir mais. Um romance com um toque histórico, mas como todos os romances históricos deviam ser: apaixonantes, com personagens capazes de nos despertar os sentidos e de nos ensinarem um pouco do que foi ou é a História de um povo, de um país, mas sem fatigar o leitor com detalhes de modo exaustivo ou enciclopédico.

Vamos descobrindo Ugwu, Odenigbo (o patrão) ou Olanna e a gémea Kainene, mas também Richard ou Okonji, através de descrições muito bem conseguidas, seja dos sorrisos que têm, do tom de voz que empregam quando debatem uma ideia ou até como, sem dizerem nada, conseguem ser caracterizados por acções e olhares, brilhantemente conseguidos pela autora, de forma simples mas tocante.

“– Somos gémeas – disse ela, e calou-se por um instante, como se estivesse prestes a fazer uma grande revelação.
– Kainene e Olanna. O nome dela tem o significado lírico de «ouro de Deus», e o meu o sentido prático de «vejamos o que Deus nos traz»”.

«Ver o que Deus lhes reserva» é o que o leitor faz durante todo o romance, seja pelo rumo histórico da guerra na Nigéria, mais propriamente a época em que a República do Biafra se constituiu e quis ser independente da Nigéria – diferenciando ainda mais o Norte e o Sul do país, juntamente com questões étnicas entre ibus, iorubas e haúças -, ou pelo lado religioso e económico – e, claro, o peso da anterior colonização britânica. É nesta incursão por aquele que foi um curto período da História da Nigéria que passamos a conhecer o significado do título, estabelecendo-se todo o cenário que alterará o curso destas vidas.

A forma como a política entra neste livro foi muito bem engendrada pela autora, com aqueles serões na casa de Odenigbo ou pela forma como coloca Ugwu nos bastidores com as suas tentativas de compreensão, ensinando e divertindo ao mesmo tempo. É preciso mestria e nem todos a têm. Até a forma como a personagem de Okeoma surge, com os seus poemas, ou os excertos do livro que Richard queria escrever, são formas muito interessantes de meter uma história dentro de outra – e sempre com pontos de vista que tanto se completam como se afastam, incitando a discussão no grupo.

“– Tu é que não estás a ver as coisas como elas realmente são!
– Odenigbo mexeu-se na cadeira, nervoso. – Estamos a viver um período de grande maldade branca. Eles andam a desumanizar os negros na África do Sul e na Rodésia, fomentaram o que aconteceu no Congo, não deixam os negros americanos votarem, não deixam os aborígenes australianos votar, mas o pior é o que estão a fazer aqui. Este pacto de defesa é pior que o _apartheid _e do que a segregação, nós é que não nos estamos a aperceber disso. Eles estão a controlar-nos a partir dos bastidores, o que é extremamente perigoso!”

Meio Sol Amarelo, D. Quixote, Deus Me Livro, Chimamanda Ngozi AdicheA narrativa está recheada de discursos quentes, uns mais inflamados que outros, sejam os de pendor político ou os que avançam no romance e na vida destes dois casais e de quem orbita em seu redor. A própria forma como, cronologicamente, o livro nos é apresentado, do início dos anos 60 para o final – e depois novamente o início antes de termos o desfecho final -, contribui para o lermos impacientemente, quase como se o destino daqueles personagens dependesse da nossa velocidade de impedir acontecimentos terríveis e marcantes.

“Nasceu o Biafra! Seremos os líderes da África Negra! Viveremos em segurança! Nunca mais ninguém nos atacará! Nunca mais! Odenigbo ergueu o braço enquanto falava com Olanna lembrou-se de como o braço da Tia Ifeka lhe parecera todo torcido quando ela jazia no chão, da maneira como o sangue se empoçara, tão espesso que parecia cola e quase preto em vez de vermelho. Talvez a Tia Ifeka estivesse a ver aquele comício naquele instante, e todas aquelas pessoas, ou talvez não, talvez a morte fosse uma silenciosa opacidade. Olanna sacudiu a cabeça para afugentar esses pensamentos, tirou Bebé do pescoço de Ugwu e abraçou-a junto ao peito.”

O Biafra nasceu, mas não continuou como eles desejaram. Como acontece com muitos sonhos. A paz desejada e o amor que os unia sofreu provações, e a maneira de continuarem unidos é talvez a maior história para além da História de uma parte da Nigéria.

Chimamanda Ngozi AdicheD. QuixoteMeio Sol Amarelo

Cris Rodrigues

Pode Gostar de

  • Eu (Odeio) Adoro Livros, MariaJo Ilustrajo, Deus Me Livro, Fábula, Crítica, Mil Folhas

    “Eu (Odeio) Adoro Livros” | MariaJo Ilustrajo

  • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Vogais, 1945 - Contagem Decrescente, Chris Wallace, Mitch Weiss, Mil Folhas

    Curtas da Estante: “1945 – Contagem Decrescente” | Chris Wallace e Mitch Weiss

  • Deus Me Livro, Crítica, Contraponto, Ainda Vamos a Tempo!, Ivone Patrão, Mil Folhas

    “Ainda Vamos a Tempo!” | Ivone Patrão

Sem Comentários

Deixe uma opinião Cancelar

Siga-nos aqui

Follow @Deus_Me_Livro
Follow on Instagram

Mil Folhas

  • Eu (Odeio) Adoro Livros, MariaJo Ilustrajo, Deus Me Livro, Fábula, Crítica,

    “Eu (Odeio) Adoro Livros” | MariaJo Ilustrajo

    30/05/2025
  • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Vogais, 1945 - Contagem Decrescente, Chris Wallace, Mitch Weiss,

    Curtas da Estante: “1945 – Contagem Decrescente” | Chris Wallace e Mitch Weiss

    29/05/2025
  • Deus Me Livro, Crítica, Contraponto, Ainda Vamos a Tempo!, Ivone Patrão,

    “Ainda Vamos a Tempo!” | Ivone Patrão

    29/05/2025
  • Curtas da Estante, Deus Me Livro, Religião Sem Deus, Gradiva, Ronald Dworkin,

    Curtas da Estante: “Religião Sem Deus” | Ronald Dworkin

    29/05/2025
  • Curtas da Estante, Devir, Deus Me Livro, Hitler, Shigeru Mizuki,

    Curtas da Estante: “Hitler” | Shigeru Mizuki

    28/05/2025
Acha o Deus Me Livro diferente? CLIQUE AQUI.

Archives

  • May 2025
  • April 2025
  • March 2025
  • February 2025
  • January 2025
  • December 2024
  • November 2024
  • October 2024
  • September 2024
  • August 2024
  • July 2024
  • June 2024
  • May 2024
  • April 2024
  • March 2024
  • February 2024
  • January 2024
  • December 2023
  • November 2023
  • October 2023
  • September 2023
  • August 2023
  • July 2023
  • June 2023
  • May 2023
  • April 2023
  • March 2023
  • February 2023
  • January 2023
  • December 2022
  • November 2022
  • October 2022
  • September 2022
  • August 2022
  • July 2022
  • June 2022
  • May 2022
  • April 2022
  • March 2022
  • February 2022
  • January 2022
  • December 2021
  • November 2021
  • October 2021
  • September 2021
  • August 2021
  • July 2021
  • June 2021
  • May 2021
  • April 2021
  • March 2021
  • February 2021
  • January 2021
  • December 2020
  • November 2020
  • October 2020
  • September 2020
  • August 2020
  • July 2020
  • June 2020
  • May 2020
  • April 2020
  • March 2020
  • February 2020
  • January 2020
  • December 2019
  • November 2019
  • October 2019
  • September 2019
  • August 2019
  • July 2019
  • June 2019
  • May 2019
  • April 2019
  • March 2019
  • February 2019
  • January 2019
  • December 2018
  • November 2018
  • October 2018
  • September 2018
  • August 2018
  • July 2018
  • June 2018
  • May 2018
  • April 2018
  • March 2018
  • February 2018
  • January 2018
  • December 2017
  • November 2017
  • October 2017
  • September 2017
  • August 2017
  • July 2017
  • June 2017
  • May 2017
  • April 2017
  • March 2017
  • February 2017
  • January 2017
  • December 2016
  • November 2016
  • October 2016
  • September 2016
  • August 2016
  • July 2016
  • June 2016
  • May 2016
  • April 2016
  • March 2016
  • February 2016
  • January 2016
  • December 2015
  • November 2015
  • October 2015
  • September 2015
  • August 2015
  • July 2015
  • June 2015
  • May 2015
  • April 2015
  • March 2015
  • February 2015
  • January 2015
  • December 2014
  • November 2014
  • October 2014
  • September 2014
  • August 2014
  • July 2014
  • Contacto