A matriarca da última família grega da Crimeia dá pelo nome de Medeia. Com a cabeça envolvida por um “xaile desbotado”, é descrita como uma babushka carrancuda “a quem o traje do luto caía bem”. Viúva e sem descendência directa, Medeia é uma mulher “cheia de fibra”, que assume com naturalidade o papel de chefe de família — ou não estivesse ela no centro de uma extensa e intrincada teia genealógica. Eis a fascinante história de “Medeia e os Seus Filhos” (Cavalo de Ferro, 2022).
Alternando entre o passado e o presente narrativos, a autora Ludmila Ulitskaya conta a sina dos membros da família Sinopli, cujo destino espalhou pelo globo no seguimento de sucessivas guerras, revoluções, fomes e deportações. Aparentemente indiferente às tragédias que marcaram o Leste Europeu na primeira metade do século passado, Medeia, “que sobrevivera a todas as desordens na Crimeia”, torna-se na guardiã do último reduto da família em Teodósia, onde a vasta linhagem dos Sinopli se reúne, quase religiosamente, todo o santo Verão.
Por sua parte, e apesar da ascendência helénica e nome ilustre, Medeia é pouco dada a crenças mitológicas. É, no entanto, possível entrever nesta trama familiar um indício determinista, quiçá obra das lendárias Moiras — as irmãs fiandeiras que tecem o fio da vida da Grécia Antiga. Seja predestinação ou puro acaso, os esforços de Medeia centram-se na “lealdade à mitologia da vida familiar” e na luta contra a desintegração dos Sinopli, que entretanto se dispersaram pela Geórgia, Lituânia, Moscovo, Sibéria e Ásia Central.
Cada capítulo é como que um minucioso conto, que apresenta cada uma das personagens da narrativa à medida que estas retornam à velha Crimeia, para se reunirem na humilde casa de Medeia para mais um período estival. Num clima quente em que “todo o ar transbordava de atracção mútua, do movimento subtil das almas e dos corpos”, os habitantes da península, familiares visitantes e outros veraneantes ocasionais caem languidamente nos braços escaldantes de Afrodite.
Nas palavras de Ulitskaya lê-se a sagacidade da escrita de Pushkin, ouvem-se os ecos realistas de Tolstoi e descobrem-se os simples segredos da natureza humana, fazendo a personagem central desta obra lembrar a “Sibila” de Agustina Bessa-Luís.
“Medeia e os Seus Filhos” reflecte sobre perseverança, movimentos sociais e traumas colectivos, mesmo que, à superfície, a autora pinte uma bonita e detalhada matriosca geracional que realça o drama, o escândalo, a cobiça, rivalidades e segredos entre primos, irmãos, ascendentes e descendência — no fundo, os eventos de uma família normal.
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