Foi uma das mais esmeradas edições de 2022 no que à banda desenhada diz respeito, servida em capa dura com o selo da Arte de Autor: a edição integral de “Mausart” (Arte de Autor, 2022), álbum que reúne o díptico Mausart e Mausart em Veneza, com argumento de Thierry Joor e ilustrações de Gradimir Smudja – que volta a ser publicado em Portugal depois da edição incompleta de Vicent e Vang Gogh, editado no longínquo ano de 2003. Um díptico originalmente lançado pela francesa Delcourt, respectivamente em 2018 e 2019, e que se lê como uma espécie de falsa biografia, em jeito de fábula, do enorme compositor Wolfgang Amadeus Mozart – aqui Mausart -, e das suas tricas com Salieri.
Em Mausart, a primeira metade, Mausart e a família – pai, mãe e sete irmãos e irmãs – vivem dentro do piano do músico oficial da corte do rei da Áustria, o lobo Salieri. Mausart e a sua irmã Maria Anna acalentam o sonho de ter um piano e, não resistindo ao impuldo criativo, Mausart dá por si a teclar no piano proibido, numa actuação que chega aos ouvidos do rei que, julgando tratar-se de uma nova peça de Salieri, pede que este a toque no aniversário da rainha.
De súbito um joguete nas mãos de Salieri, que pretende ter para si todos os louros, Mausart faz entrar em cena uma flauta mágica, com apenas seis orifícios, que faz com que quem a toque ganhe aos olhos de quem ouve “uma aparência monstruosa e mais avantajada do que tem na realidade” – uma alusão à Flauta Mágica, uma ópera em dois actos estreada em 1791.
Na segunda metade do álbum viajamos até Veneza, uma das paragens de Mausart na sua extensa tour europeia, cidade que em pleno Carnaval irá receber o último concerto da digressão. Lopar, primo de Ligo (o secretário de Salieri), encarrega-se de fazer desta uma estadia memorável para Mausart, prometendo tratá-lo – literalmente – “no ponto”. Um livro onde se conta a história de Antonio Stardivari, construtor de violinos, e se revela uma dissertação tão verdadeira na época de Mausart como na nossa: “Como é curiosa esta época em que a aparência e a fama passam à frente dos verdadeiros sentimentos e das relações sinceras”.
Esta edição inclui ainda alguns tesouros escondidos, mais concretamente algumas ilustrações de Gradimir Smudja, que encheu vários cadernos de esboços preparatórios, a partir dos quais Thierry Joor escreveu o argumento de Mausart. Para Thierry Joor, são como “os prazeres açucarados gentilmente propostos no final da refeição por um chef premiado”. A melhor das sobremesas.
Biografias
Thierry Joor (argumentista) nasceu em Bruxelas em 1961. Reside na Bélgica e em Paris. Ligado desde sempre à banda desenhada e caçador de autógrafos desde os onze anos, já publica fanzines antes de ingressar na École Supérieure des Arts Saint-Luc, em 1989. Mas o bichinho da edição é mais forte que o do desenho e, ainda estudante, cria um novo fanzine, o Kaput, que reúne uma seleção de histórias de antigos alunos mas também dos seus companheiros de ateliê. Em 1984, juntamente com o irmão, cria uma estrutura editorial batizada Les Éditions du Lion, com a qual publica edições de luxo de Franquin e de Hermann, bem como obras colectivas inspiradas nas personagens de Spirou e, depois, de Tintin. Em 1987, após a falência do seu distribuidor francês, abre, em Bruxelas, a livraria e galeria Sans Titre. Em 1998, na sequência da publicação da sua autobiografia (Le Monde est petit), editada por ocasião dos dez anos da sua actividade de livreiro e galerista, inicia uma colaboração com Guy Delcourt na qualidade de diretor de colecção. Em Março de 2003, torna-se editor das Éditions Delcourt. Em 2004, Guy Delcourt propõe-lhe tornar-se director literário da sua editora. Actualmente, é editor de numerosas séries de sucesso, como Les Légendaires, La Rose Écarlate, Les Blagues de Toto, Okko, Sillage (primeiros volumes da série editados pela Vitamina BD em Portugal entre 2001 e 2004, com o título Senda) ou Centaurus. Mausart é o seu primeiro argumento profissional.
Gradimir Smudja (argumentista, ilustrador, colorista) nasceu em Novi Sad, na Jugoslávia, em julho de 1954. Emigra para a Suíça no início dos anos 1980. Aí, exercita o seu pincel ao serviço de um galerista, para quem reproduz telas dos grandes mestres do Impressionismo. Autêntico faz-tudo, executa cópias, trabalhos sobre tela e madeira e caricaturas antes de conseguir um lugar de professor de desenho na cidade de Lucca, em Itália. O seu Vincent e Van Gogh (primeiro volume editado pela Witloof, em 2003) é um projecto antigo que lhe é particularmente querido e em que Smudja revela toda a extensão do seu talento, imitando na perfeição algumas das telas que marcaram a vida e imortalizaram o nome de Van Gogh. Mas essa cópia do trabalho do génio holandês não é uma simples representação técnica nem um mero exercício de estilo; é, acima de tudo, uma homenagem a Vincent feita por um pintor. A sua interpretação muito pessoal da história de Van Gogh, que parte do princípio de que a genialidade do pintor holandês se deve simplesmente ao seu gato, relata o percurso desse génio incompreendido com tanto humor como talento. Em 2004, é publicado Le Bordel des Muses (Delcourt), onde se dedica a outro monumento da pintura, Toulouse-Lautrec.
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