Maria Velho da Costa (1938-2020) será provavelmente mais famosa como co-autora das “Novas Cartas Portuguesas”, obra que em 1972 ousou abordar a condição feminina e foi por isso apreendida pela polícia política, sob a acusação de atentado à moral pública. Contudo, merece ser igualmente conhecida pelo seu primeiro romance, publicado pela primeira vez em 1969: “Maina Mendes” (Assírio & Alvim, 2022 – reedição).
Esta nova edição inclui o prefácio escrito em 1977 por Eduardo Lourenço e utiliza na capa, muito apropriadamente, uma pintura de Ilda David intitulada “Mudez”. “A Mudez” é também o nome da primeira parte da obra e uma das chaves para a sua compreensão, pois o mutismo é a reacção da protagonista a uma sociedade que a silencia.
Conhecemos Maina ainda criança, “de compostura grave, paramentada de boneca limpa”, a desenhar no vidro embaciado que a separa do mundo exterior à casa da família. Quando reproduz um gesto obsceno que viu um rapaz fazer na rua, é esbofeteada pela mãe, que pretende “tolhê-la ao fofo e à compostura”, convencida do dever de preservar uma ordem patriarcal que prescreve a transformação de quaisquer filhas em “senhoras a ajeitar”. A agressão provoca em Maina uma convulsão – descrita de forma tão surrealista que a sua ocorrência só ficará esclarecida mais adiante – e mergulha-a num silêncio que o médico classifica como “comportamento histérico”. O uso da voz fica reservado para os sonhos, pois neles é “ouvida com justeza”.
Maina volta a falar anos mais tarde, na sequência da visita do primo Ruy, regressado de uma guerra em África e recebido como herói. O rapaz que outrora a erguia no ar e lhe contava histórias, é agora um homem que nem a vê; lemos as palavras dele, mas não as dela. Será posteriormente “dita por apagada e severa no trato”, conceberá fugas impossíveis com Hortelinda, a fiel serviçal, e casará sem nenhum interesse pelo noivo, que verá goradas as suas expectativas de vida marital e acabará por afastá-la do único filho: “Relegada serás com teus odores e falas taciturnas aonde a meus espíritos aprouver”.
Na segunda parte do livro seguimos a voz deste filho, em sessões de psicoterapia onde analisa as consequências de uma infância marcada pela sensação de ter sido “filho de mãe incógnita”. “You know she is mentally ill”, diz ele à esposa inglesa, referindo-se à mãe. A esposa não acredita: “She does not think so. She does not think with those words. She’s not mad”. Morto o marido e reatada a ligação ao filho, Maina chega a sorrir perante a liberdade que vê na nora e pressente para a neta, mas a situação em que a deixamos, já idosa, entre a janela e a televisão, não é propriamente um final feliz.
O puzzle da vida de Maina Mendes só pode ser reconstituído a partir de múltiplas vozes, em várias línguas e registos. É inegável que o experimentalismo linguístico dificulta muito a leitura da obra, mas também é ele que a faz parecer tão inovadora hoje como na data da primeira edição.
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