Em 2021, Paul Auster deixou pendurada a vida de romancista e escreveu sobre a vida de Stephen Crane (1871-1900), personagem um pouco esquecido da literatura americana que, de acordo com muito boa gente, foi o responsável pela transformação da literatura americana. Conhecido como o autor do clássico de guerra “A Insígnia Vermelha da Coragem”, escreveu, na sua breve passagem pelo planeta – morreu de tuberculose aos 28 anos -, contos, novelas, poemas, peças de jornalismo e reportagens de guerra.
“Nascido no Dia dos Mortos e morto cinco meses antes do seu vigésimo nono aniversário, Stephen Crane viveu cinco meses e cinco dias no século xx, desfeito pela tuberculose antes de ter oportunidade de conduzir um automóvel ou ver um avião, ver um filme projectado no grande ecrã ou ouvir um rádio, uma figura do mundo antigo que perdeu o futuro que aguardava os seus pares, não só a construção destas máquinas e invenções milagrosas, mas também os horrores da época, incluindo a destruição de dezenas de milhões de vidas nas duas guerras mundiais. Os seus contemporâneos foram Henri Matisse (vinte e dois meses mais velho do que ele), Vladimir Lenine (dezessete meses mais velho), Marcel Proust (quatro meses mais velho) e escritores americanos como W. E. B. Du Bois, Theodor Dreiser, Willa Cather, Gertrude Stein, Sherwood Anderson e Robert Frost, que perduraram, todos, largos anos no novo século. Mas a obra de Crane, que fugia às tradições de quase tudo o que viera antes dele, era tão radical para a época que ele pode agora ser considerado o primeiro modernista americano, o principal responsável por mudar a forma como vemos o mundo pelo prisma da palavra escrita.”
É assim que arranca “Homem em Chamas” (Asa, 2021 – ler crítica), a monumental biografia assinada por Auster que, na edição portuguesa e em letra miúda, se estende para lá das 850 páginas. Um projecto que Auster decidiu assumir após a retirada de “A Insígnia Vermelha da Coragem” da lista de livros escolares de leitura obrigatória, ficando a missão literária, segundo ele, “nas mãos dos especialistas”. Mas nem só de “A Insígnia Vermelha da Coragem” se faz a obra de Crane, que assinou, por exemplo, este “Maggie” (Guerra & Paz, 2022). Um livro que, nas palavras de Auster, é “passado no inferno”, “um clarão absoluto de vermelho ofuscante”, que “trespassa o coração” e “grita e atordoa-nos até nos subjugar”.
O curto romance é protagonizado por Maggie, uma pobre, ingénua e jovem rapariga que vive nos subúrbios de Nova Iorque em finais do século XIX, num edifício que “estremecia e rangia com o peso da humanidade que lhe pisava as entranhas”, fazendo parte de uma família que é tudo menos isso: pais alcóolicos com tendência para a destruição e um irmão que pouco mais faz do que lutar.
Maggie, que contra todas as expectativas “desabrochou numa poça de lama”, torna-se uma rapariga bonita, esperando por um príncipe encantado que parece chegar na forma de um amigo do irmão, que a leva a conhecer um mundo que lhe estava até então vedado, para inveja da mãe e desconfiança do irmão.
Stephen Crane faz uso da narrativa pura, pedindo ao leitor que se envolva numa história que, desde o início, deixa a promessa de que não irá correr bem. Um livro curto, duro e cortante sobre o lado mais sórdido da alma humana, e que sem Crane o saber estava destinado a tornar-se também um grito feminino contra as convenções morais e o patriarcado.
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