“Se uma história se parece com o corpo de um animal, então pode começar por um calcanhar. O calcanhar esquerdo do filho mais novo de Cartola de Sousa nasceu malformado. O pai deu-lhe um nome helénico, tentando resolver o destino com a tradição.”
É assim que começa “Luanda, Lisboa, Paraíso” (Companhia das Letras, 2018), livro que não se consegue ler num só fôlego. Se, por um lado, é dura a viagem da miséria humana, por outro são belas as palavras que descrevem os cruzamentos geográficos, a metamorfose humana. Ao virar cada página é necessário, por vezes, parar, para voltar depois a saborear cada palavra. Todas-poderosas. Escolhidas com elegante sensibilidade. A experiência do desenraizamento, a existência silenciosa, a condição social do homem, a diáspora, o amor, amizade e a família são temas que atravessam esta magnífica narrativa de Djaimilia Pereira de Almeida.
O parto de Aquiles deixara Glória, sua mãe, imobilizada na cama onde passa os anos seguintes. É esse estado de doença que a impede de viajar com o marido e o filho para Lisboa, ficando em Luanda ao cuidado da filha, Justina.
Aos catorze anos, Aquiles, na companhia de seu pai, despede-se de Luanda sem certezas quanto ao regresso, e ruma a Lisboa para ser submetido à operação e tratamentos adequados, com o objectivo de corrigir a malformação. Partem, ambos, cheios de fantasias e esperanças.
Em Lisboa, o sonho desvanece-se. “Os primeiros passeios pela baixa perderam o encanto, Cartola e Aquiles já não se lembravam de como a cidade lhes tinha começado por parecer silenciosa. (…) Pai e filho perderam a ilusão de que Lisboa os aguardava e de que ali podiam contar com alguém ou esperar alguma coisa do futuro, a cidade tornou-se uma barulheira”. As dificuldades na Pensão Covilhã, bem como o afastamento do Dr. Barbosa da Cunha, amplificam a miséria e a evidência de que não são acolhidos como portugueses.
É necessário recomeçar, apesar do sonho esfumado. “O pai de Aquiles queria vomitar Luanda, mas ainda não conseguia; queria livrar-se da primeira vida, mas ela fazia-lhe frente; passar à próxima etapa, mas era ainda o mesmo homem. (…) Ainda no hospital, Aquiles tenha deixado de se sentir angolano”. Cartola “chorou pela primeira vez em Lisboa, mas não lhe caiu nenhuma lágrima”. Não chorou por Luanda. A decisão estava tomada – o regresso à terra natal não ia acontecer, a memória de Luanda dissipava-se. Cartola e Aquiles vivem vidas díspares, marginais, repletas de memórias e silenciamentos, de transmutações, de esperança e pessimismo.
Pouco a pouco, esquece o parteiro que foi em Luanda. A vida em Lisboa complica-se, mas uma nova vida começa no Paraíso, um bairro de lata. Pai e filho vivem em condições precárias, mas é no Paraíso que a esperança e a felicidade, ainda que fugazes, invadem as suas vidas. Pepe, o taberneiro, dá sentido à palavra amizade – “Aquiles achava Pepe patusco e gostava que o pai tivesse feito um amigo após tanto tempo”. O afecto ganha significado e Iuri, o miúdo negro do Paraíso, é prova disso. “Pepe e Cartola decidiram-se a resolver a vida do miúdo”, dando-lhe o melhor verão da sua vida e facultando a oportunidade de aprender a ler e a escrever. Aos nove anos, Iuri vive o entusiasmo de ir à escola pela primeira vez.
O amor. O amor aos filhos, à neta, à Glória. Em “Luanda, Lisboa, Paraíso”, o amor pela família é transversal à narrativa. Os telefonemas e as cartas mantêm vivo o amor entre Glória e Cartola, mas o ressentimento da distância de Cartola é bem visível num dos bilhetes de Glória, marcado pela ausência de palavras – apenas a sombra dos seus lábios marcados pelo batom. Cartola “dava conta de se ir esquecendo a pouco a pouco da cara dela”. Afinal, quem era Glória? A sua única ligação ao passado. Apenas uma memória.
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