Como em tantas coisas na vida, chego atrasado aos balanços de 2021. Mas não resisti. Aqui ficam algumas palavras sobre seis livros que me marcaram no ano que findou ainda há poucochinho. Apesar de pouco ter escrito sobre livros ao longo de 2021 (o que não significa que tenha estado distante deles, quer a nível pessoal, quer no que respeita às actividades profissionais desenvolvidas – bem pelo contrário), não resisto a fazer o gosto ao(s) dedo(s) e assumir algumas palavras sobre uns poucos títulos que foram publicados durante 2021 em Portugal e merecem a nossa atenção. A nossa, a vossa e a de quem passar por estas linhas. Não se trata de um “best of” do ano, nem sequer de recensões, nada disso, apenas uma curta memória de alguns livros que me passaram pelos olhos durante este ano e cumpriram bem o seu papel.
Começo por um pequeno volume de contos, com a assinatura de Eduardo Pitta, autor que divide a sua escrita entre a poesia, a crítica literária, algumas reflexões de pendor político (num sentido lato do termo) e, como aqui, a ficção. “Devastação“, dado à estampa pela Dom Quixote, lê-se rapidamente. Mas deixa marcas. A escrita é enxuta, mas os elementos do seu universo criativo estão bem visíveis. Na escolha da maioria dos personagens e o meio sócio-económico onde se movem; na permanente desmistificação de uma felicidade aparente que, tantas vezes, enforma vidas inteiras; na exibição da hipocrisia social; na recordação do pulo de gigante que foi o êxodo de tantas vidas, construídas numa África (talvez) ainda por entender; nas referências intelectuais e artísticas; na questão da homossexualidade ainda ser uma questão.
Em todos estes contos há uma relação de causa-efeito entre o passado e as suas consequências, optando o autor por alguns desenlaces em que a surpresa, a intensidade do desfecho, deixam no ar um certo ambiente de fatum inexorável. Todos os contos têm nome de gente e é disso mesmo que tratam, de pessoas e de vidas, de escolhas e de consequências, como no inesquecível “João Pedro”, no centro de um Natal muito peculiar (onde a tia Adelaide parece ser algo semelhante à tia Laura, figura que encerra de forma inesquecível Cidade Proibida, romance do mesmo Eduardo Pitta, publicado em 2007).
Num registo completamente diferente, com uma dimensão oposta, foi uma boa surpresa encontrar “Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor“, uma apelativa antologia de poesia angolana, elaborada pela docente universitária Irene Guerra Marques e pelo poeta Carlos Ferreira (com presença assinalável na Rádio e Imprensa), em iniciativa editorial da Guerra & Paz. E apelativa, por vários motivos. Antes de mais, pela magnitude e abrangência a que se propõe. Estamos a falar de um livro com quase 700 páginas, mais de 600 textos, incluindo mais de três dezenas de transcrições de poemas orais em quatro línguas faladas em Angola (kikongo, kimbundo, cuanhama e umbundu). O trabalho apresenta-se organizado em três partes. A saber: 1) Formas de arte verbal ou oratura; 2) Precursores (séculos XVII-XIX); 3) Modernidade e Contemporaneidade (continuidades e descontinuidades), onde encontramos os textos mais recentes, dos séculos XX e XXI.
Nestas páginas coexistem diferentes abordagens à carga telúrica, cuja funda matriz se faz sentir em diversas destas vozes poéticas, diferentes gerações e sensibilidades, uma História sentida e transmitida, iconografia e simbologia partilhada, mitos e sonhos, aproximações complementares à figura humana, à memória colectiva, à unificação com a Natureza e as tradições. Mas também momentos de revolta e disrupção, de aclamação da modernidade e da discordância, olhares apontados para uma luz que tarda em ganhar contornos de perenidade.
Trata-se, indubitavelmente, de uma obra ambiciosa, servindo, simultaneamente, as necessidades de consulta encontradas por investigadores, académicos e demais estudiosos, ao mesmo tempo que convida a um mergulho descomprometido aos apreciadores de poesia que encontrarão aqui, lado a lado, nomes que reconhecerão e textos que se arriscam a ser uma luminosa descoberta. Num total de 135 autores identificados, passeamos por realidades e épocas distintas, construindo um corpus identitário e multifacetado, que evoca os elementos e a memória, as contingências históricas e as crenças, a iconografia e a geografia.
A mesma editora, Guerra & Paz, é responsável, em 2021, por outro lançamento que não deve ser subestimado. Se, aos mais novos, o nome de Jonathan Swift (1667-1745) poderá, quanto muito, remeter para “As Viagens de Gulliver”, este natural de Dublin é responsável por um dos mais espantosos textos da literatura de língua inglesa da sua época, um manifesto que vai muito para além do humor negro em que tantas vezes é “arrumado” e que estende o seu alcance a uma visão política da sociedade: crítica, lúcida e – infeliz e paradoxalmente – extremamente actual.
Falo-vos do texto “Uma Modesta Proposta”, escrito em 1729, que regressa às livrarias. A quem não conheça, imagine que a proposta passa por aconselhar os pobres a vender os seus filhos para que os ricos os possam cozinhar e alimentar-se deles, transformando o fardo o seu sustento na solução do sucesso dos pais. A apenas aparente dureza e crueldade serve de aconchego a uma inteligente e certeira metáfora, trazendo, mais uma vez a lume (pouco brando) o carácter ideológico que podemos encontrar em toda a obra deste autor (mesmo nas deambulações de Gulliver, em mundos onde, ora é o mais pequeno, ora assume o papel de gigante desproporcional).
Esta obra-prima surge, desta vez, integrada numa edição que chama para a capa um outro prodígio de provocação e combate político-social, pela primeira vez em tradução portuguesa: “Os Benefícios de dar Peidos” (tradução de Ana Relvas França e revisão literária de André Morgado) é um título que não pode deixar ninguém indiferente.
Estamos perante um texto anterior, datado de 1722 e, como explicam as palavras de introdução, do próprio editor, Manuel S. Fonseca, Swift aconselha “as modestas damas a não se torcerem em pudores, encorajando-as a libertarem-se de aragens e ventosidades, única forma de protegerem a saúde, que os então novos costumes de beber chá e café poriam em perigo”.
Como bem contextualiza este mesmo texto explicativo, a intenção do autor de outros momentos igualmente memoráveis de sagaz provocação literária (como “Preceitos para Uso do Pessoal Doméstico” ou “Um Argumento Contra a Abolição do Cristianismo”) é mais profunda e subtil: “escatológica, a peça swiftiana é também política e religiosa e terá, porventura, sido concebida como sátira inconformada e inconformista ao capítulo The Benefits of Fasting (Os Benefícios de Jejuar) que o bispo e vice-reitor da Universidade de Dublin, Jeremy Taylor, escreveu num venerável The Rules and Exercices of Holy Living“.
Falemos agora de Banda Desenhada, género que esteve muito bem representado no panorama editorial português. Destaco um, até porque, tratando-se de uma adaptação, neste caso da obra mais famosa de um dos grandes escritores do séc. XX, funciona como um excelente exemplo disso mesmo, a demonstração de que adaptar para BD um romance não implica co colocar o máximo de texto possível (tal como num filme).
A obra em causa é a distopia “1984“, escrita por George Orwell, que conheceu diversas versões no universo da designada Nona Arte a transporem a mais famosa parábola sobre ditaduras. A versão de Sybille Titeux de la Croix (texto) e Amazing Améziane (imagens), com tradução de Diogo Paiva, publicada pela Cavalo de Ferro, traz-nos a história de Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, servida num contexto gráfico extremamente adequado, recorrendo a uma estética francamente devedora da Publicidade, das Artes Gráficas e de todo um imaginário devedor do Construtivismo Russo, tudo referências que nem sequer destoam da sociedade totalitária e manipuladora em que assenta a narrativa. O texto não abunda, há imagens a ocuparem uma página inteira (uma vinheta única, portanto) e o efeito é impressionante.
Uma boa surpresa foi o romance de estreia de Fernando Ribeiro, mais conhecido de muitos pela presença em palco como vocalista dos Moonspell, mas já com diversas incursões no mundo editorial, quer pela poesia, quer por alguns contos, prefácios e traduções. “Bairro sem Saída“, em edição da Suma de Letras, era um projecto já antigo do músico, que toma como cenário o bairro da Brandoa que tão bem conheceu, transfigurando o local e as suas memórias, recorrendo a diversas referências (marcas, programas de televisão e outras) para datar a narrativa e mesclar realidade e ficção, entrecruzando a dimensão autobiográfica com um retrato político e social da época, tudo servido num registo fortemente alicerçado na tradição pícara e finalizando com laivos de sobrenatural. Tudo conjugado, confirma-se a capacidade de Fernando Ribeiro em contar, bem, e de forma apelativa e original, uma história em que muitos reconhecerão outras, fruto de uma memória colectiva sempre presente ao longo de todo o livro.
Para encerrar esta curta, mas sincera e dedicada, deambulação por alguns livros que merecem atenção (a minha, mereceram, daí a opinião nada imparcial) e chegaram à edição portuguesa em 2021, escolhi um livro com séculos de escrita, uma das obras centrais da literatura portuguesa, numa elegante edição, abrilhantada com ilustrações de primeiríssima água. Graças a uma abrangente colaboração – trata-se de uma co-edição entre a Universidade do Minho/UMinho Editora e a Faktoria K de Livros, uma chancela da Kalandraka, em parceria com o Município de Guimarães – ganhámos uma elegante edição em capa dura da obra maior de Luis Vaz de Camões, “Os Lusíadas“, com ilustrações de onze artistas: Amanda Baeza, Carolina Celas, Catarina Gomes, Inês Machado, Joana Estrela, Joana Rêgo, Madalena Matoso, Mariana Rio, Marta Madureira e Marta Monteiro. Quanto ao texto, surge numa actualização de Rita Marnoto (da Universidade de Coimbra) e a edição inclui uma apresentação de Rui Vieira de Castro (Reitor da Universidade do Minho).
Apontar os melhores livros do ano, é um exercício assaz arriscado, quiçá inglório, certamente injusto. Partilhar algumas das leituras mais impactantes, tarefa pessoal, subjectiva e fortemente associada a afinidades várias, isso, achei que conseguiria fazer. Mesmo com uns dias de atraso, permitam-me a ousadia. E um Bom Ano de 2022, prenhe de páginas que nos cativem.
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[…] Livros de 2021: ainda posso?: Claro que sim, João Morales. Deste furacão da discussão cultural podemos sempre esperar propostas muito arrojadas, algumas obscuras, mas sempre de dar a volta à cabeça do leitor. […]