“Traduzir não é clonar“. Foi este o desafio, em estilo de provérbio literário, que o festival literário Livros a Oeste lançou às tradutoras Tânia Ganho e Margarida Vale de Gato, numa conversa que decorreu na Escola Secundária Dr. João Manuel da Costa Delgado, Lourinhã.
Encontrando-se as tradutoras em universos diferentes, pretendeu-se saber se é assim tão diferente traduzir poesia e prosa. Para Margarida, “a diferença está no tempo, é uma questão prática“, uma vez que pode traduzir um poema num único dia o que, na maior parte das vezes, é impossível quando tem entre mãos um romance. Os problemas, esses, são idênticos em ambos os géneros literários, havendo que identificar o estilo do autor, que vem da individualidade de cada obra. “É contraproducente um tradutor pensar que vai traduzir sempre da mesma maneira“, afirmou Margarida apresentando a função do tradutor como a de um barqueiro quase arrancado à ficção científica: “Quando traduzo tenho de inventar coisas, de pegar em palavras para as encaixar num planeta que já existe“.
Tânia Ganho começou por apontar para o domínio da tradução em tudo o que nos rodeia, seja nos rótulos de frascos de shampoo ou cremes, nas Apps ou nas séries, filmes e outros programas a que assistimos em pequenos e grandes ecrãs. Em relação ao universo de tradução, a preferência tem recaído sempre na prosa, tendo no entanto um privilégio que, normalmente, está vedado à grande maioria dos tradutores: “Tenho a liberdade de traduzir os textos que escolho“. Numa profissão que “exige disciplina mas sobretudo paixão“, o acto de traduzir reflecte-se numa “relação íntima com o autor” – “Leio os outros livros, as críticas, as entrevistas” – e também com muitas horas dedicadas à pesquisa. Para “Um Gentleman em Moscovo” (D. Quixote, 2018), por exemplo, viu durante horas fotos do hotel para sentir a atmosfera, num livro que é, quase todo ele, passado entre paredes, tudo para poder “mostrar outro mundo que não é o nosso“.
“Para traduzir poesia e preciso ser poeta?“, pergunta João Morales. Margarida acredita que não, até porque “a poesia é a linguagem que trazemos no coração, que sabemos de cor. Todos temos um pouco de poeta dentro de nós“. E menciona o filme “Paterson”, onde a certa altura se ouve uma pérola como esta: “A poesia não faz as notícias mas há quem morra pela falta dela“.
“Por vezes tenho a cabeça cheia de personagens, de frases“, afirma Tânia referindo-se ao processo de transição, por vezes complicado, entre livros, referindo que “há personagens que ficam sempre“, essencial para quem é também leitor.
Outro handicap, sobretudo no que à língua inglesa diz respeito, tem a ver com o género – ou da falta dele – no texto que se está a traduzir. Margarida diz que há sempre a hipótese de se tentar encontrar um adjectivo que não tenha género, como trocar “louco” por “demente”, mas que estando o autor vivo é sempre possível enviar um mail: “Gosto muito do diálogo“.
No que toca aos benefits, a tradução junta “ler e investigar“, duas das coisas de que Margarida mais gosta. Mas de onde surgiu esta voracidade? “O impulso de traduzir vem do impulso de ler“, diz, antes de referir que o grande objectivo do tradutor é estar em uníssono com o autor e que, podendo escolher, o melhor é deitar fora aquilo que não faz parte do seu universo pessoal: “O acto de confiança inicial com o autor é essencial“.
“Eu não tenho esta linguagem, este mundo não é meu. Temos de ter a noção dos nossos limites“, refere Tânia Ganho a respeito de “Trainspotting”, livro de Irvine Welsh que não gostaria de traduzir pelo facto de a linguagem que o atravessa não ser a sua. Um livro que acabou de forma épica no grande ecrã pela mão de Danny Boyle, mas que estranhamente – ou não – nenhum dos muitos alunos na sala tinha visto.
Sobre o tema da plasticidade da língua como algo de fundamental para a tradução, Margarida mencionou o projecto favouritepoem.org, aproveitando para passar um vídeo onde John Ulrich, um estudante de Boston, lê com sotaque carregado o curtíssimo “We Real Cool”, poema de Gwendolyn Brooks, uma mulher de raça negra, escrito em 1960. E que, num certo verso, foi traduzido desta forma numa parceria entre Margarida e a sua filha, que a ajudou a transpor o poema para os dias de hoje e para uma outra geografia: “Curtimos a drena / Nós morremos, temos pena“, que arrancou uma ovação que só por pouco não foi de pé.
A propósito do mito urbano de os tradutores estarem com os dias contados, substituídos por um exército de Sofias da tradução, Tânia Ganho aproveitou para ler o resultado de uma tradução googliana, plena de palavras como “legal” e atravessada por um acentuado e muito deslocado sotaque brasileiro. Quanto ao humor, lugar onde normalmente se encontram as maiores dificuldades na tradução, Tânia disse fazer tudo ao seu alcance para evitar as notas de rodapé, mesmo quando se depara com o inconfundível british humor. Well done girls!
Foto: Município da Lourinhã
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