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Livros a Oeste: João Tordo abriu o livro e António-Pedro Vasconcelos deu show de bola

Por Pedro Miguel Silva · Em 09/05/2018

Começou ontem a 7ª edição do Livros a Oeste, festival literário que decorre na Lourinhã até ao próximo dia 12 de Maio, e que conta com a organização do Município da Lourinhã – estando a programação entregue a João Morales.

Coube a João Tordo, muito provavelmente o maior romancista português dos últimos anos, guiar os leitores pelas páginas de “Ensina-me a voar sobre os telhados” (Companhia das Letras Portugal, 2018), o seu mais recente livro que decorre em diferentes geografias e tempos, mais leve que a Trilogia dos Lugares sem Nome mas mantendo todo o cerne existencialista que tem atravessado a sua escrita.

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Com moderação de João Morales, que foi intercalando a apresentação com a leitura de excertos do livro, João Tordo abriu literalmente o livro, falando não apenas do mapa da história mas, sobretudo, dos vários momentos, dispersos ao longo de uma vida, que acabaram por dar origem a este livro feita de amizades improváveis e de amores construídos a partir de gestos, objectos e silêncios. Para João Tordo, que diz ter um filtro muito severo no que toca a armazenar matéria para a escrita, “muitas vezes as histórias que se vão impondo são as que falam de coisas mais antigas”. Ou, dito outra forma, “sou o advogado de acusação das minhas ideias”.

Ludmila, a moldava que se revela uma das mais interessantes personagens do romance, foi resgatada da infância de Tordo, que teve uma empregada com esse nome – apesar de ucraniana. Terá sido ela a primeira paixão do autor, então pelos 9 anos, descoberta pela mãe que chegou perto dele dizendo que Ludmila, que não sabia ler, lhe tinha entregue o bilhete para saber o que tinha lá escrito.

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Nasceu aí, nesse rememorar de um episódio de infância, a vontade de inventar uma história onde duas pessoas se apaixonassem sem nunca se verem, que acabou por ver a luz da edição num conto encomendado por uma imobiliária – “um escritor tem de ganhar a vida”, atirou Tordo. Conto esse que acabou por, mais tarde, levar a “Ensina-me a voar sobre os telhados”, e que está incluído no próprio romance como um dos seus capítulos.

Outra motivação foi a ida de Tordo a Macau, no ano de 2015, onde conheceu um japonês algo estranho, que vestia unicamente de preto, que apenas quebrou o silêncio – estavam sentados a uma mesa com várias pessoas – ao fim de 15 brindes, para lhe contar que a sua família descendia de Genghis Khan, e que os seus antepassados tinham o poder da levitação, podendo voar sobre as estepes. Um sonho de voar que, confidenciou Tordo, o acompanhou desde sempre, até mesmo quando já se encontrava já na Faculdade. Um encontro fortuito e uma  personagem real que acabou por ser a base de Henrique Tsukuda, o rebelde japonês que é o anti-herói de “Ensina-me a voar sobre os telhados”, contado por um narrador que está em busca de uma redenção, depois de não ter sabido lidar com o facto de o seu filho ter nascido surdo.

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Japão que, curiosamente, se começou a desenhar na açoriana Ilha Terceira, quando na companhia do também escritor Joel Neto Tordo avistou dois ilhéus, aparentemente alcançáveis mas na realidade inacessíveis a nado, que acabariam por se ver transplantados para o romance como o lugar para onde se é enviado para morrer. “Gosto de histórias de clausura”, disse Tordo, sobre este romance a duas geografias que, até se cruzarem, despertam no leitor emoções bem diferentes. Se, no Japão, nos deparamos com “uma prosa mais austera” e acontecimentos onde reina a crueldade, em Portugal vive-se a compaixão, numa história que parte de um suicídio de um professor em pleno Liceu de Camões – um acontecimento que leva o director da escola a reunir os professores, que sofrem de uma depressão colectiva, ao estilo dos alcoólicos anónimos, como terapia para ultrapassar a perda e a dor.

João Tordo falou ainda dos seus três anteriores livros, conjunto a que prefere chamar de tríptico em vez de trilogia, uma vez que cada um deles pode ser lido independentemente – ainda que, dizemos nós, faça sentido lê-los todos e de preferência seguidos, uma vez que no final tudo se interliga.

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Sobre “O Deslumbre de Cecilia Fluss”, livro que considera o melhor do tríptico em termos formais, partilhou de onde lhe chegou a voz daquela mulher de sessenta e tal anos: de ter crescido rodeado de mulheres, cujas vozes, semelhantes a um coro grego, tanto lhe inspiravam o terror como a compaixão – sendo esta última a qualidade que acabou por dominar o livro. Quanto a “O Paraíso Segundo Lars D.”, contou com um empurrão do Tinder, aplicação que Tordo usou sem experimentar mas que lhe apresentou, como proposta de pessoas compatíveis, tudo mulheres bem mais velhas. Nascendo então, na literatura, alguém que apesar da idade se recusa a deixar de amar.

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Não fosse “Ensina-me a voar sobre os telhados” um livro pautado por inúmeras referências cinematográficas, a Méliès mas sobretudo a Ingmar Bergman, Tordo falou de um filme deste último intitulado “Luz de Inverno”, que trata olhar para a fé de uma forma mais humana, ou ainda de falar da dor, algo que está presente na literatura de Tordo como uma constante, como o substrato último da humanidade, aquilo que nos move como seres humanos.

João Tordo foi também um dos convidados da sessão nocturna “Ficção: Contar Mentiras Verdadeiras”, onde esteve acompanhado pela escritora Filipa Martins e o realizador António-Pedro Vasconcelos que, mesmo tendo o seu Benfica a viver dias não propriamente felizes, deu um autêntico show de bola, roubando para si quase todo o protagonismo.

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Depois de ter falado de “Na Memória dos Rouxinóis” como um livro que vai, de certa forma, beber ao realismo mágico, Filipa Martins contou a história de Nabokov e da sua musa Vera – que começou num baile de máscaras -, para referir o amor como o lugar de excelência onde se fundem a ficção e a realidade, referindo como desejável o momento em que se consegue preservar uma carta real dentro da ficção. Falou do acto de escrita como o território onde termina com as suas assombrações e encosta à parede os demónios interiores, ou não tivesse, num dos seus livros, assassinasse nas páginas alguém que, não sem uma certa pena, não podia despachar no mundo real – “fiz um julgamento capital”. Referindo-se a uma teoria que circulava nos anos sessenta de que todos os escritores seriam esquizofrénicos, Filipa Martins falou também da escrita como uma forma de controlar essa mesma esquizofrenia, um lugar de catarse.

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João Tordo usou uma imagem de Murakami para falar da diferença do olhar do escritor em relação aos outros. Chegando perto e olhando no horizonte o Monte Fuji, um homem contempla-o dizendo-o em voz alta que, de facto, se trata do monte mais bonito do mundo. Já o escritor precisa de subir lá a cima, de atravessar todos os caminhos e de enfrentar várias adversidades, antes de repetir essa mesma afirmação. Precisa, enfim, de tomar o caminho mais longo. A propósito da questão levantada por João Morales de se os escritores julgam as suas personagens, Tordo preferiu olhar para as personagens da ficção moderna como anti-heróis, e do leitor como alguém que está constantemente a torcer pelo underdog. Falou também, a propósito do budismo – que revela “a simplicidade do caminho para sair do sofrimento” -, da solidão como aquilo que nos afasta ou nos leva até Deus, defendendo que, mais do que vidas, a ficção tem a ver com vozes, e que no seu processo de escrita, apesar de recorrer ao método de escrever a direito, “nunca parto para a página em branco comigo em branco”. Quanto à clássica questão “Porque é que escreve”, levantada por alguém do público, Tordo referiu uma compilação que tem feito sobre escritores e patologias, dizendo que “as bênçãos vêm em parte das nossas feridas, ou da forma como as tratamos”.

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Depois de um preâmbulo sobre “O Futuro da Ficção”, livro/ensaio onde entre outras coisas fala da explosão das Torres Gémeas como o momento que simbolizou a morte de heróis representados na tela por gente como Sylvester Stallone, Bruce Willis ou Arnold Schwarzenegger, António-Pedro Vasconcelos referiu o poder que a ficção tem de condicionar o espírito das sociedades, mas também que, nela – e de acordo com o espírito de Coleridge -, temos de embarcar suspendendo a descrença. Para Vasconcelos, o melhor exemplo do papel da ficção é dado com Xerazade, onde o poder de adiar a morte surge com o recurso às histórias, que em As Mil e Uma Noites vão ficando em suspenso, sempre inacabadas.

Para António-Pedro Vasconcelos, a ficção moderna, em grande parte, suprimiu Deus e a crença, defendendo que há uma constante na ficção ocidental que tem migrado de século em século, de cultura em cultura. E, se a História está sempre em aberto, a ficção fecha-se em si própria, tendo de ter um princípio, um meio e um fim para ser credível.

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Ao longo das suas intervenções não faltaram temas que deliciaram o público: dos westerns como o género cinéfilo que impediu a morte das epopeias ao estilo Homérico; do cinema – e sobretudo de Hitchcock – como uma arte hipnótica;  de uma história, separada por duas décadas, que envolve Mário Soares e Nicolau Breyner, segundo o realizador “os dois melhores actores com quem trabalhei” – chegou mesmo a filmar e a dirigir os tempos de antenas durante a clássica campanha das presidenciais de 1986; da Poética de Aristóteles como um livro onde foi dito tudo o que havia a dizer sobre a ficção; da loucura do escritor como algo que chega da sua imensa solidão, e da palavra “ensimesmado” como a que melhor define o que é ser escritor. Ou, ainda, disparando uma frase que poderia servir de epitáfio: “Os filmes ensinaram-me a viver, e foi a vida que me ensinou a fazer cinema”.

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No primeiro dia do Livros a Oeste espreitámos ainda a exposição Cada Leitor é Frankenstein, de Raf Cruz – patente na Galeria Municipal da Lourinhã até 31 de Maio -, onde o seu autor, que estudou Artes Gráficas e trabalha na área da comunicação visual, se aventura no universo da Collage e da foto-montagem, pegando em revistas e jornais antigos para nos apresentar um universo fascinante, algures entre a fotografia surrealista, o cartoon social e a ilustração psicológica. Imagens que merecem acabar num livro de arte ou, em alternativa, num requintado catálogo de exposição.

O festival literário Livros a Oeste prossegue até dia 12 de Maio. A programação pode ser consultada aqui.

 

Fotografias de Rita Chantre.

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Pedro Miguel Silva

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1 Commentário

  • Helena Sousa comentou: 10/05/2018 at 12:13

    Como se não bastasse o óptimo e programa e leque de convidados, de notar aqui os óptimos textos e fotografias; Parabéns a todos!!!

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